sexta-feira, 31 de agosto de 2012

1984 - quando 2 + 2 são 5



Bem, venho hoje aqui para apresentar, aos que ainda não leram, o meu livro favorito. 1984 foi escrito por George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, um dos grandes escritores do século XX. Como escritor, crítico e romancista, publicou obras fantásticas mas em 1984 supera a todas. Criou um texto originalíssimo, do qual ressalto três aspectos: enredo, personagens e linguagem.
O enredo trata da quintessência do totalitarismo em uma sociedade alienada, reprimida, ignara, controlada pelo Grande Irmão que tudo vigia. São tão complexos os mecanismos de dominação, tudo tão minimamente planejado, apenas a título de exposição temos os membros do Partido que controlam a massa; a Polícia das Ideias, que são agendes de espionagem; as teletelas, aparelhos espalhados por todos os lugares que captam áudio e vídeo; a Novafala, língua oficial do partido, composta de um número mínimo de palavras cujo objetivo era simples: estreitar o âmbito do pensamento, de modo a tornar o pensamento-crime (palavra utilizada para denominar o pensamento subversivo) impossível, uma vez que não existiriam palavras para expressá-lo; o duplipensamento capacidade de abrigar simultaneamente duas crenças contraditórias e acreditar em ambas igualmente, uma das maiores bases do Socing (sistema político vigente); os dois minutos de ódio, que era uma exposição de vídeos durante dois minutos nos cinemas, com imagens de lestasianos, eurasianos e de Goldenstein, líder da Confrataria (supostos inimigos do governo), enquanto as pessoas gritavam, urravam, arremessavam coisas contra a tela, solução inteligente para direcionar todos os sentimentos reprimidos para um foco que não o Socing. Tudo isso aliado aos problemas típicos das sociedades totalitárias: a corrupção, o desabastecimento, as fraudes, torturas, guerras, até os inimigos do governo são farsas construídas. 
E é nesse panorama que se encontra Winston Smith, nosso protagonista e contra o qual se revolta. Ao longo do livro, vemos a evolução e o amadurecimento de seu sentimento revolucionário até a sua completa desilusão. Trabalhando no Ministério da Verdade, seu dever era manipular fraudulentamente as notícias, levando os cidadãos à crença somente do que lhes era permitido, mudando constantemente o passado para que o Grande Irmão estivesse sempre certo. Aos poucos ele percebe o quanto os mecanismos de dominação são complexos, o quanto é inútil lutar contra um sistema tão arquitetado. Em seu anseio por liberdade e verdade, arrisca sua vida ao envolver-se amorosamente com uma colega de trabalho, Júlia e com uma organização revolucionária secreta. Seu fim, no entanto, não é de esperança, pelo contrário, apenas mostra a indestrutibilidade do Socing. 
Mas uma história complexa requer personagens igualmente complexos. São personalidades únicas.  A população (que pode ser traduzida aqui como um único personagem) é completamente alienada e fanática pelo Grande Irmão. Não é para menos, todos os sentimentos que nos fazem humanos foram de alguma forma direcionados ao sistema. O sexo inclusive era visto apenas como forma de se reproduzir, não havia prazer. Toda a tensão sexual era revertida em exaltação, em adoração pelo Partido. Até o amor era visto como sentimento negativo; não obstante haver casamento, o marido ou a esposa não se viam como companheiros, mas como dois estranhos que se denunciariam à mínima atitude suspeita. Nas instituições os colegas não se falavam, filhos aprendem desde cedo a espionar os próprios pais. 
Apenas os proletas gozavam de alguma liberdade. Viviam separados dos membros do partido, em bairros afastados, e trabalhavam nas fábricas. Para eles, as regras eram diferentes, assim como os mecanismos de dominação. Para controlá-los, os estado promovia jogos de futebol, loterias, distribuição de vídeos com conteúdo sexual, acesso à cerveja, de modo que eles preenchiam o horizonte estreito de suas mentes e nunca se revoltavam. Era proibido qualquer membro da população visitar o bairro dos proletas. 
Quanto a nosso Winston ele é um homem feio, de saúde ruim, Júlia, seu par, uma mulher devassa, e politicamente desinteressada, que quer apenas um pouco mais de liberdade do que o partido oferece. Seu amor está longe daquilo que trata os romances de Jane Austen. Nas palavras do próprio protagonista “é melhor ser compreendido que amado” e isso explica melhor que eu poderia a relação entre eles.  O romance entre os dois é um símbolo contra a repressão, como a flor que fura o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio, até ser arrancada.
Quando falo de qualquer livro, tento sempre falar sobre sua escrita, sou apreciadora de frases bem elaboradas, de ideias bem expostas. Trata-se pois de linguagem rebuscada, mas que não chega a ser prolixa. A leitura é aprazível e pouco cansativa. Com várias frases de efeito, pára-se constantemente a leitura para digerir seus significados.
Gosto de comparar livros com refeições: entrada, prato principal ou sobremesa, 1984 seria uma ceia completa, após a leitura não tem-se vontade de ler outro livro, tamanha a saciedade. É um romance para todos os públicos, com uma história envolvente e bem elaborada. Vale lembrar que é menos um livro que um alerta. Faz-nos refletir sobre a realidade que inexoravelmente estamos construindo. Para exemplificar, já vivemos cercados de câmeras, a mídia já tenta nos padronizar, há uma desvalorização crescente das virtudes e as guerras para assegurar a paz já fazem parte de nossa realidade, assim como a manipulação de informações. Apesar de ter sido escrito no contexto do socialismo e ser uma crítica ao totalitarismo, a mensagem que Orwell tenta passar, permanece e é uma mensagem de advertência. A menos que o curso da história se altere, caminharemos para um futuro incerto, sujeitos a perder até nossas qualidades mais humanas sem sequer ter consciência disso.
Ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros, em que não vivam sós – a um tempo em que a verdade exista e em que o que for feito não possa ser desfeito. Da era da uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensamento – saudações!” – Winston em seu diário. 

Marcelle Vieira Freire 
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20 anos, acadêmica de Medicina, leitora nas horas vagas e mais uma colaboradora do Sagaranando.

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