Bem, venho hoje aqui para
apresentar, aos que ainda não leram, o meu livro favorito. 1984 foi escrito por
George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, um dos grandes escritores do
século XX. Como escritor, crítico e romancista, publicou obras fantásticas mas
em 1984 supera a todas. Criou um texto originalíssimo, do qual ressalto três
aspectos: enredo, personagens e linguagem.
O enredo trata da
quintessência do totalitarismo em uma sociedade alienada, reprimida, ignara,
controlada pelo Grande Irmão que tudo vigia. São tão complexos os mecanismos de
dominação, tudo tão minimamente planejado, apenas a título de exposição temos
os membros do Partido que controlam a massa; a Polícia das Ideias, que são
agendes de espionagem; as teletelas, aparelhos espalhados por todos os lugares
que captam áudio e vídeo; a Novafala, língua
oficial do partido, composta de um número mínimo de palavras cujo objetivo era
simples: estreitar o âmbito do pensamento, de modo a tornar o pensamento-crime (palavra utilizada para
denominar o pensamento subversivo) impossível, uma vez que não existiriam
palavras para expressá-lo; o duplipensamento
capacidade de abrigar simultaneamente duas crenças contraditórias e
acreditar em ambas igualmente, uma das maiores bases do Socing (sistema político
vigente); os dois minutos de ódio, que era uma exposição de vídeos durante dois
minutos nos cinemas, com imagens de lestasianos, eurasianos e de Goldenstein,
líder da Confrataria (supostos inimigos do governo), enquanto as pessoas
gritavam, urravam, arremessavam coisas contra a tela, solução inteligente para
direcionar todos os sentimentos reprimidos para um foco que não o Socing. Tudo
isso aliado aos problemas típicos das sociedades totalitárias: a corrupção, o
desabastecimento, as fraudes, torturas, guerras, até os inimigos do governo são
farsas construídas.
E é
nesse panorama que se encontra Winston Smith, nosso protagonista e contra o
qual se revolta. Ao longo do livro, vemos a evolução e o amadurecimento de seu
sentimento revolucionário até a sua completa desilusão. Trabalhando no
Ministério da Verdade, seu dever era manipular fraudulentamente as notícias,
levando os cidadãos à crença somente do que lhes era permitido, mudando
constantemente o passado para que o Grande Irmão estivesse sempre certo. Aos
poucos ele percebe o quanto os mecanismos de dominação são complexos, o quanto
é inútil lutar contra um sistema tão arquitetado. Em seu anseio por liberdade e
verdade, arrisca sua vida ao envolver-se amorosamente com uma colega de
trabalho, Júlia e com uma organização revolucionária secreta. Seu fim, no
entanto, não é de esperança, pelo contrário, apenas mostra a indestrutibilidade
do Socing.
Mas
uma história complexa requer personagens igualmente complexos. São
personalidades únicas. A população (que
pode ser traduzida aqui como um único personagem) é completamente alienada e
fanática pelo Grande Irmão. Não é para menos, todos os sentimentos que nos
fazem humanos foram de alguma forma direcionados ao sistema. O sexo inclusive
era visto apenas como forma de se reproduzir, não havia prazer. Toda a tensão
sexual era revertida em exaltação, em adoração pelo Partido. Até o amor era
visto como sentimento negativo; não obstante haver casamento, o marido ou a
esposa não se viam como companheiros, mas como dois estranhos que se
denunciariam à mínima atitude suspeita. Nas instituições os colegas não se
falavam, filhos aprendem desde cedo a espionar os próprios pais.
Apenas
os proletas gozavam de alguma liberdade. Viviam separados dos membros do
partido, em bairros afastados, e trabalhavam nas fábricas. Para eles, as regras
eram diferentes, assim como os mecanismos de dominação. Para controlá-los, os
estado promovia jogos de futebol, loterias, distribuição de vídeos com conteúdo
sexual, acesso à cerveja, de modo que eles preenchiam o horizonte estreito de
suas mentes e nunca se revoltavam. Era proibido qualquer membro da população
visitar o bairro dos proletas.
Quanto
a nosso Winston ele é um homem feio, de saúde ruim, Júlia, seu par, uma mulher
devassa, e politicamente desinteressada, que quer apenas um pouco mais de
liberdade do que o partido oferece. Seu amor está longe daquilo que trata os
romances de Jane Austen. Nas palavras do próprio protagonista “é melhor ser
compreendido que amado” e isso explica melhor que eu poderia a relação entre
eles. O romance entre os dois é um
símbolo contra a repressão, como a flor que fura o asfalto, o tédio, o nojo, o
ódio, até ser arrancada.
Quando
falo de qualquer livro, tento sempre falar sobre sua escrita, sou apreciadora de
frases bem elaboradas, de ideias bem expostas. Trata-se pois de linguagem
rebuscada, mas que não chega a ser prolixa. A leitura é aprazível e pouco
cansativa. Com várias frases de efeito, pára-se constantemente a leitura para
digerir seus significados.
Gosto
de comparar livros com refeições: entrada, prato principal ou sobremesa, 1984
seria uma ceia completa, após a leitura não tem-se vontade de ler outro livro,
tamanha a saciedade. É um romance para todos os públicos, com uma história
envolvente e bem elaborada. Vale lembrar que é menos um livro que um alerta.
Faz-nos refletir sobre a realidade que inexoravelmente estamos construindo.
Para exemplificar, já vivemos cercados de câmeras, a mídia já tenta nos
padronizar, há uma desvalorização crescente das virtudes e as guerras para
assegurar a paz já fazem parte de nossa realidade, assim como a manipulação de
informações. Apesar de ter sido escrito no contexto do socialismo e ser uma
crítica ao totalitarismo, a mensagem que Orwell tenta passar, permanece e é uma
mensagem de advertência. A menos que o curso da história se altere,
caminharemos para um futuro incerto, sujeitos a perder até nossas qualidades
mais humanas sem sequer ter consciência disso.
“Ao
futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os
homens sejam diferentes uns dos outros, em que não vivam sós – a um tempo em
que a verdade exista e em que o que for feito não possa ser desfeito. Da era da
uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensamento
– saudações!” – Winston em seu diário.
Marcelle Vieira Freire
________________________________________________
20 anos, acadêmica de Medicina, leitora nas horas vagas e mais uma colaboradora do Sagaranando.
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20 anos, acadêmica de Medicina, leitora nas horas vagas e mais uma colaboradora do Sagaranando.
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