segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Dois dias, uma noite - a maior saga de 2014

Sandra (Marion Cotillard) encontra-se num momento muito importante de sua vida. Saindo de um período de depressão grave que ainda tem reflexos no seu presente, recebe a péssima notícia de que perderá seu emprego em nome de um abono salarial para os outros funcionários. A decisão da empresa não foi tão simples assim. No caso, os outros funcionários do local tiveram, eles mesmos, que escolher entre receber o abono ou manter a colega de trabalho em serviço. Após descobrir que um deles influenciou bastante na decisão dos demais, Sandra, munida inicialmente menos por suas forças próprias que pela insistência de sua amiga e de seu marido (Fabrizio Rongioni) consegue com que seu chefe faça uma nova votação – desta vez, secreta – para chegar à decisão final. Entre essa tomada de decisão e a nova votação, o que lhe sobra é um final de semana. Dois dias para que o pequeno número de três pessoas que votaram a seu favor se transforme em nove, para que assim a maioria esteja com ela. Tudo que lhe resta é uma jornada de porta em porta tentando convencer seus colegas a lhe apoiar.
Dois dias, uma noite (Deux jours, une nuit, 2014) é um filme magistral. Excelentíssimo. Um pouco cruel em sua proposta, também é um filme bastante humano, visto que sua temática é, basicamente, uma disputa clássica e travada na banalidade do cotidiano entre solidariedade e interesses pessoais. Claro, dinheiro é sempre bom, mas até quando vale a pena o lucro em detrimento do bem estar de um colega de trabalho? De um amigo? De uma pessoa próxima a que todos sabem que se encontra fragilizada? Desta forma, os Dardenne compõem essa trama meio trágica que também nos fala muito sobre compaixão e lealdade, tendo como plano de fundo a crise econômica europeia. 
A missão de Sandra não é fácil e muito menos confortável. Imagine ter que passar dois dias inteiros andando de porta em porta, na casa de pessoas as quais você precisa pedir um favor imenso. O desconforto está estampado na cara de Sandra, até por saber que muitas daquelas pessoas realmente necessitam daquele abono. Ao receber sim como resposta, Sandra se ilumina e torna-se esperançosa, ganhando forças para continuar a jornada e agradece de maneira discreta, porém sincera. Ao receber não como resposta, aceita passivamente e não tenta forçar muito para que os outros mudem de ideia, mas implode em seu mundo particular. Perde as esperanças a cada decepção, se entregando à depressão ainda não totalmente superada. Talvez o que realmente a sustenta seja mesmo a figura sempre presente e companheira do marido, que a acompanha de perto em todos os passos da jornada. 
Um aspecto bastante interessante em Dois dias, uma noite é ver as reações de cada uma daquelas pessoas, o que traz ao filme uma surpresa a cada cinco minutos de projeção. Afinal, nem ela e muito menos nós sabemos o que passa pela cabeça daquelas pessoas, e muito menos como reagirão a tal confronto de valores morais. As reações são das mais diversas e mesclam não apenas sentimentos extremos de solidariedade ou egocentrismo, mas também de culpa, agressividade e afastamento. Interpretação perfeita de Marion Cotillard, que traz mais uma excelente atuação a sua lista enorme de bons trabalhos (Piaf e Ferrugem e Osso são meus exemplos referência em relação à atriz), emprestando a Sandra a vulnerabilidade e a exaustão de uma pessoa lutando para sair de um abismo. Filme indispensável.

Nota: 10

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Piaf

Lucas Moura

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Por Quem os Sinos Dobram - Eles dobram por ti



Ernest Hemingway, um dos mais aclamados escritores norte-americanos, dispensa apresentações e seu nome fala por si só. Escritor de clássicos com O Velho e o Mar e O Sol Também Se Levanta, alcança em Por Quem Os Sinos Dobram sua primazia, mais do que merecendo o Nobel de Literatura em 1954. E é sobre esse último livro que discorro afinal, uma leitura tão incrível merece ser comentada.
O livro retrata a missão do americano Robert Jordan de dinamitar uma ponte estratégica na região da Segóvia, durante a Guerra Civil Espanhola, na qual lutou ao lado dos Republicanos, contra o exército fascista. Na verdade o livro apenas inicia-se como uma missão, mas seu verdadeiro conteúdo transcende uma simples ordem militar. Explico. Robert Jordan começa o livro como um soldado modelo, daqueles que põe a própria vida em segundo plano ante um objetivo maior.
 “Você não existe e não existem as pessoas que não devem enfrentar isso ou aquilo. Nem você nem este velho são nada. Vocês são apenas instrumentos de sua missão. Vocês não têm culpa dessas ordens, elas são necessárias, e existe uma ponte, uma ponte que pode ser o vértice onde a mudança do futuro da raça humana irá acontecer. Assim como de repente tudo pode mudar nesta guerra. Você tem apenas uma coisa para fazer, e você deve fazê-la” 
A beleza do livro está em ver uma pessoa tão objetiva, tão seca, tão calculista alcançando o que podemos chamar de humanidade. Recheado de monólogos internos, acompanhamos a mudança da percepção do protagonista com relação à guerra, sua relação com as pessoas, sobre a própria vida, sobre a Espanha. A estória passa-se apenas em 3 dias e 3 noites, mas não é a toa que o livro possui mais de 500 páginas. E ao final dele, nós mesmos nos sentimos mais maduros e mais sábios. Como o próprio personagem reconhece, em 4 dias viveu uma vida inteira. Logo antes de executar a missão, sua mudança de perspectiva é patente:

“Quão pouco sabemos do que há para saber. Gostaria de ter uma vida longa, em vez de morrer hoje, pois aprendi tanto sobre a vida nestes últimos quatro dias, muito mais, eu acho, do que em todos os anteriores. Gostaria de me tornar um homem velho e verdadeiramente sábio. Tenho curiosidade de saber se a gente segue aprendendo, ou se há um certo limite de aprendizagem para cada homem. Pensei que soubesse tantas coisas e na verdade não sei nada. Queria ter mais tempo".
É claro que durante esse período várias personagens marcantes contribuíram para seu autoconhecimento. Para trabalhar na sua missão, teve de recorrer a alguns guerrilheiros espanhóis que viviam nas montanhas e o acolheram prontamente ávidos por ajudar a República. Personagens incríveis como o decadente líder Pablo, a sempre forte Pilar, a ingênua Maria, o fiel Anselmo, entre outros tantos que em conjunto despertam uma sensação de respeito mais profundo por um povo tão lutador, não só no sentido combativo. Aliás, seu romance com Maria marca uns dos pontos mais sensíveis da obra e tem especial significado para Robert, que de tão objetivo, nunca tinha amado. 
“Ele estava deitado na relva, de lado, a cabeça afundada nas urzes, sentindo o seu cheiro e o cheiro da terra, e o sol derramava-se, e ele sentia coceira nos ombros nus arranhados e ao longo de seu corpo, o corpo da garota deitada de frente para ele, com os olhos ainda fechados, e então ela os abriu e sorriu para ele, que lhe disse exausto, distante, mas amigável, “Olá, coelhinha”. (...) “Maria, eu te amo, você é tão encantadora, tão maravilhosa e linda, fazes-me coisas para ficar contigo que eu sinto como se quisesse morrer quando estou te amando”.— Oh, eu morro a cada vez. Você não morre?"
Uma das maiores qualidades desse livro é a sinceridade da obra. Hemingway foi correspondente em Madrid durante a Guerra Civil Espanhola, e toda crueza de sua vivência nesse período transparece na leitura. Na verdade a guerra é inspiração de outros livros do autor, as touradas por exemplo vão inspirar o enredo de O Sol Também se Levanta, mas em uma dimensão muito menos densa, o que reitera opiniões de que Por Quem os Sinos Dobram é realmente sua obra prima. Livro este que é belo desde o início, com a mençãodo sábio poema de John Donne, o qual dará título ao livro. 
“Nenhum homem é uma Ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é uma partícula do Continente, uma parte da terra. Se um Pequeno Torrão carregado pelo Mar deixa menor a Europa, como se todo um Promontório fosse, ou a Herdade de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de um único homem me diminui, porque Eu pertenço à Humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.”
Encerro essa resenha com um trecho do final do livro, na minha opinião das partes mais comoventes da obra. Aos que não gostam de spoillers, não leiam, apesar de o final ser um tanto previsível, o que não diminui em nada a qualidade do livro.

"Lutei durante um ano pelo que acredito. Se vencermos aqui, venceremos em todos os lugares. O mundo é um bom lugar e vale a pena lutar por ele, e odeio ter que deixá-lo. Você teve muita sorte por ter uma vida tão boa. Teve uma vida tão boa quanto a do seu avô, apenas não tão longa. Teve uma vida boa como outra pessoa qualquer, por causa desses últimos dias. Você não vai querer reclamar, justo quando teve tanta sorte. Mas eu gostaria de passar à frente o que aprendi. Cristo, eu aprendi rápido no final.”