terça-feira, 12 de maio de 2020

Crepúsculo dos deuses - Billy Wilder, 1950

Um dos temas preferidos de Hollywood é falar sobre si, sobre o processo criativo e os bastidores da indústria do cinema. É um tópico bastante recorrente desde a chamada época de ouro do cinema clássico até os filmes contemporâneos. Um dos filmes que mais se aprofunda nos aspectos psicológicos envolvidos com a fama e a idolatria que cerca as grandes estrelas é Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard, 1950), clássico indispensável para qualquer amante de cinema.
O filme traz o relacionamento complexo entre um jovem e falido roteirista chamado Joe (Willian Holden) e uma antiga estrela do cinema chamada Norma Desmond (Gloria Swanson). Os dois se conhecem por um acaso quando ele acaba escondendo na mansão da atriz enquanto fugia de funcionários do banco que lhe perseguiam para tomar seu carro por falta de pagamento. Na interação entre os dois, parece se formar uma relação bem simples e até vantajosa para Joe. Em troca de um abrigo (quase um esconderijo) e um bom salário, Joe trabalharia junto com Norma fazendo revisões em um roteiro escrito pela atriz como sua tentativa de voltar ao estrelato.
Temos aqui duas figuras vivendo momentos completamente diferentes em suas vidas, mas ambos no limite. Joe é jovem, mas a situação financeira que ele vive é tão séria que não parece haver grandes opções para ele que não voltar para sua cidade natal e desistir do sonho de uma carreira dentro do cinema. Esta é uma das faces de Hollywood que o filme traz: a difícil jornada para o estrelato. Apesar da grande propaganda de terra de oportunidades, fazer uma carreira dentro do cinema é extremamente difícil. Mesmo que tenha tido um aparente bom começo, Joe encontra-se desempregado e num difícil processo artístico, visto que não consegue encontrar o balanço entre tornar sua arte relevante e ao mesmo tempo comercial. A mesma cidade que se maquia de cidade dos sonhos é bastante cruel com sonhadores. Joe é, então, um homem cínico e cético que não tem muito a perder – e quem não tem nada a perder está disposto a muitas coisas.
Norma Desmond não é uma atriz qualquer, mas sim uma das maiores estrelas do cinema mudo. A maior de todas (como gosta de frisar), mas seus dias de glória há muito ficaram para trás com a mudança na maneira de fazer cinema que veio com o advento da fala e com a extinção do cinema mudo. A mesma indústria que alimentava o ego de suas estrelas, e que as elevava ao status de deuses, simplesmente virou as costas para eles, jogando-os ao esquecimento e a lembranças e ilusões de um passado glorioso e distante. A maneira como o estrelato e a exclusão são capazes de perverter a mente humana é o grande foco do filme. Norma é completamente desconectada com a realidade, agarrada fielmente a um passado que não vai voltar e a crenças cegas de que o público e a indústria não a descartaram. Sua negação é tão grande que ela demonstra profundo desprezo pelo cinema falado, quase como se esta fosse uma forma inferior de arte e como se a culpa pelo seu sofrimento fosse o áudio e não as pessoas que se aproveitaram de sua imagem. Em suas próprias palavras: eu sou grande, os filmes é que ficaram pequenos. A maneira como ela se agarra à grandiosidade é digna de pena (inclusive por parte de Joe) e reverbera na manutenção de hábitos do passado, em relações pontuais com antigos amigos também envolvidos no cinema mudo e no apego a bens materiais decadentes, mas com toda a extravagância digna de Gatsby e dos anos 20. Quando a realidade torna-se inevitável, Norma demonstra toda sua fragilidade emocional e deixa à mostra grande tristeza e vulnerabilidade.
Outro aspecto que o filme aborda de maneira bem pertinente é o processo de envelhecimento diante das telas e de como isso é um problema para as atrizes. ATRIZES, não atores. Quando acredita que seu projeto realmente vai sair do papel, Norma entra em um processo obsessivo de “embelezamento”, se submetendo a diversos e desconfortáveis tipos de tratamento para tentar aparentar ser mais jovem. Esse é um problema que atrizes vivenciam até hoje. É muito comum que atrizes tenham seus anos mais prolíficos no cinema em torno de seus 20 a 30 anos de idade e que a partir de certa idade o número de ofertas de papéis interessantes diminui consideravelmente, além de muitas acabarem sendo encaixadas em personagens engessados ou figuras específicas como a mãe, a esposa ou a professora. Mesmo hoje, poucas atrizes conseguem quebrar com frequência os estereótipos que vêm com a idade, o que não se vê na mesma intensidade com os homens. Em certo momento, Joe critica – e até ridiculariza – Norma pelo seu desespero em tentar parecer uma mulher de 25 anos, mas não parece se atentar muito à origem do problema, o que também é algo que fazemos com frequência nos dias de hoje, com uma mídia focada em apontar “falhas” e criticar a aparência de atrizes e de mulheres em evidência no geral.
Em um toque de genialidade na escolha do elenco, Gloria Swanson vive Norma. É genial, pois no sentido mais íntimo da questão Gloria e Norma são até certo ponto a mesma pessoa, visto que a atriz Gloria Swanson, assim como a personagem Norma Desmond, foi uma atriz de reconhecimento gigante no cinema mudo que teve sua carreira arrasada pelo envelhecimento e pelo crescimento do cinema falado.
Crepúsculo dos deuses vai fundo na ferida e critica a maneira hollywoodiana de tratar pessoas como bens materiais descartáveis de uma forma que o torna relevante mesmo hoje, 70 anos após seu lançamento. É um dos melhores filmes do Billy Wilder (isso não é pouca coisa) e um dos melhores clássicos do cinema estadunidense.

Nota: 10

Lucas Moura

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