domingo, 25 de novembro de 2012

Viver a vida - arte em doze cenas

Retrato rápido da curta existência de uma jovem prostituta, Nana (Anna Karina), Viver a vida (Vivre sa vie, 1962) é um dos principais filmes do diretor Jean-Luc Godard que aqui trabalha, mais uma vez, com sua musa e esposa na época.
Para contar a história de Nana, o diretor dividiu seu conto em doze cenas descontínuas e aparentemente desconexas. Cada uma delas, no entanto, acaba nos revelando detalhes importantes sobre o estilo de cinema de seu autor, traços de personalidade da protagonista e reflexões filosóficas de todo o tipo sobre diferentes linhas de pensamento, desde a superficialidade do falar à importância do amor, passando por análises sobre o cinema comercial.
Em Viver a vida, Nana é uma moça sem dinheiro e solitária que acaba decidindo se tornar prostituta para poder se manter. Ao entrar para o negócio, ela pouco sabe sobre a nova realidade que deverá enfrentar e vai aprendendo aos poucos como lidar com esta situação. Existe uma cena completa (a oitava, creio eu) que é uma verdadeira aula de prostituição. Vemos imagens aparentemente desconexas de Nana com seus clientes enquanto vamos ouvindo uma narração em off de uma conversação entre ela e seu “homem” esclarecendo qualquer questionamento sobre o que se deve fazer neste mercado. Não, não estou falando em sentido figurado. É exatamente isso, um questionamento sobre prostituição. Quanto cobrar, quem atender, quando atender, onde atender, o que fazer caso haja problemas com a polícia e por aí vai. Creio que esta seja uma das cenas mais interessantes dentre os filmes de Godard que pude assistir e dá um caráter quase documental ao filme, tornando-o muito mais real.
Ao encontrar Yvette, uma antiga amiga, Nana acaba entrando de vez num perigoso jogo que acaba levando-a a um fim trágico. Este fim, no entanto, é previsto pela própria Nana e antecipado ao espectador através da exibição curta, porém importante, do filme mudo A paixão de Joana D’arc, ressaltando seu martírio. Em Viver a vida, aliás, há uma busca por um contato direto com a antiga arte do cinema mudo, através de tomadas silenciosas e da figura da própria Anna Karina, mais bela que o normal. Por mais que acompanhemos a trajetória desta mulher, na verdade pouco se sabe sobre ela e há um constante distanciamento entre Nana e o espectador (muitas tomadas são feitas com ela de costas para a câmera). 
Em termos de fotografia, Viver a vida traz uma Paris tão séria quanto bela, ao utilizar-se do preto-e-branco para torná-la perfeitamente adequada a sobriedade do clima da trama.

Leia também:
O desprezo
Os incompreendidos
Pierrot le fou

Lucas Moura

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Pierrot le fou - liberdade, loucura e Godard

É notória a aversão que Jean-Luc Godard tinha ao cinema norte-americano. Aversão esta que está comprovada em Pierrot le fou (1965), o mais revolucionário de seus primeiros filmes, em que usa diversos elementos clichês de filmes americanos como perseguição, romance, luta, assassinato, roubo e fuga para criticá-los e romper de vez com o chamado cinema burguês.  No enredo isso se aplica ao protagonista, Ferdinand (Jean-Paul Belmondo), um professor universitário que se cansa de sua vida burguesa e tediosa e abandona sua bela esposa e foge com a babá de seus filhos, Marianne (Anna Karina), com quem já tivera um caso.
Envolvidos com um assassinato e com o tráfico de armas, Marianne e Ferdinand (que é insistentemente chamado de Pierrot pela companheira, e sempre responde "Je m'appelle Ferdinand!") simulam um acidente numa estrada e ateiam fogo ao carro em que fugiam, para depois viver a custa de pequenos golpes e enfim chegar ao litoral, onde permanecem pelo resto do filme.
Se Godard já vinha inovando em seus filmes anteriores, com Pierrot le fou ele chuta o pau da barraca e quebra tudo. A narração do filme é cheia de sarcasmo, polêmica, provocação e confronto; não há linearidade narrativa e nem mesmo o acompanhamento psicológico das personagens é linear. Pierrot é, acima de tudo, uma apologia ao inconformismo libertário tão pregado pela Nouvelle vague. Começando pela fuga de Ferdinand, no começo do filme - o que faz deste um filme de estrada, consequentemente é carregado de filosofia - e prosseguindo enquanto eles estão indo rumo ao litoral, mas não com objetivos específicos, e sim decididos a admirar o que vier pelo caminho, vendo beleza onde ninguém mais vê e encarando como arte o que as pessoas vêem como banal.
Ferdinand inicialmente se mostra engrandecido por sua coragem e rebeldia ao romper com a sociedade, mas vai percebendo que não faz ideia do que encontrará pelo caminho e o quanto é pequeno e insignificante perante o mundo. Ele usa a leitura e a escrita como alívio, desabafando suas angústias num diário e ocupando seu tempo com diversos livros que Marianne lhe arranja.
Marianne, por sua vez, durante quase todo o filme antagoniza os sentimentos de Ferdinand - se ele está feliz, ela está triste ou distante, se ele está interessado em algo, ela sente desprezo.  Eles só concordam em uma coisa: seguir sua jornada juntos. É uma personagem muito complexa e bela (inclusive fisicamente, Anna Karina aqui está linda como poucas atrizes conseguiram ser), sempre com ar despreocupado e indiferente, uma forma que ela encontrou para seguir em frente, apenas vivendo e desfrutando a vida.
Pierrot é um filme único - Godard destrói tudo e usa os mais diversos elementos, deixando difícil classificá-lo num só gênero. Ele é drama, é tragédia, é filme de estrada, é musical - Marianne solta a voz muitas vezes, inclusive com cantigas quase infantis. Merece atenção, claro, a narração feita por ambos os protagonistas, que se alternam, completando as frases um do outro, às vezes confundindo um pouco o espectador - afinal, o filme pode não ser difícil como O Desprezo, mas fácil também ele não é. Numa coisa ambos são parecidos: as ótimas direção de arte e fotografia, valorizando as belas paisagens por onde o casal passa.
No Brasil Pierrot le fou ganhou o inexplicável nome O demônio das onze horas. Sem mais.

Leia também: Os incompreendidos
                       O desprezo

Luís F. Passos

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Touro Indomável - não menos que genial


Entre o fim dos anos 60 e toda a década de 70, instalou-se em Hollywood um movimento cinematográfico liderado por jovens atores, diretores e roteiristas, inspirados, sobretudo, nas diretrizes da nouvelle vague e afoitos por trazer uma forma nova de criação para o cinema americano, utilizando-se da exposição de temas mais sérios, violentos e sexuais, muitas vezes ultrapassando limites, quebrando noções de falsa moralidade, elevando um mundo “underground” de pessoas excluídas da sociedade e apresentando trabalhos tão frios quanto cruéis e realistas. O primeiro grande marco dessa geração foi a viagem alucinógena de Peter Fonda, Dennis Hooper e Jack Nicholson, no road movie Sem destino (Easy Rider, 1969) que abriu definitivamente as portas da contra-cultura, dos anti-heróis e do cinema autoral para a sétima arte americana. Durante os anos que se passaram, quase toda a produção cinematográfica estava diretamente relacionada a esse movimento que atingia uma grande margem de espectadores, em sua maioria jovens, ansiosos por verem uma digna representação de sua geração nas telas. No entanto, todo carnaval tem seu fim.
Aos poucos, a Nova Hollywood (como eram chamadas) foi perdendo força (lê-se dinheiro) quando o público em geral passou a se cansar da excessiva densidade psicológica a qual ficavam expostos. Dessa forma, não havia mais interesse por parte das grandes produtoras em financiar filmes tão viscerais e, aos poucos, o movimento foi perdendo a força. Diria que uma grande marca desse declínio foi a derrota d Apocalypse Now para Kramer vs. Kramer, no Oscar de 1979. Era o início do fim. Antes que o movimento em si terminasse (mantendo, no entanto, seu legado), Martin Scorsese (um dos principais diretores desse período) trouxe ao mundo este que é um de seus melhores trabalhos, um dos melhores filmes dos anos 80 e uma grande homenagem ao cinema de toda essa geração: Touro indomável (Raging bull, 1981).
Touro indomável, em termos de roteiro, é bem simples. É a vida de Jake La Motta (Robert De Niro), o “touro do Bronx”. La Motta é uma pessoa real, e foi um grande lutador de boxe na década de 40. O filme vai explorar, então, todos os traços de sua confusa personalidade, uma pessoa extremamente violenta, agressiva, intolerante e confusa, incapaz de manter uma relação estável com alguém, egocêntrico demais para perceber que o mundo não gira apenas em torno de si e que não sabe se comunicar ou muito menos expressar seus sentimentos confusos, conturbados e, às vezes, indecifráveis, de outra forma que não seja através dos punhos. A inconstância e a mentalidade violenta o tornam quase insuportável e o afastam até mesmo de seu irmão, Joey (Joe Pesci), que também foi seu empresário durante muitos anos e que o fez chegar à posição de destaque no boxe mundial, e de sua mulher, Vickie (Cathy Moriarty, com uma beleza clássica), por quem sente um ciúme doentio (fundamentado pela sua incapacidade sexual). Dessa forma, La Motta segue pelo filme como se estivesse subindo e descendo uma ladeira: uma grande subida inicial, encontrando sua futura esposa, firmando-se no boxe, assumindo uma rivalidade com Sugar Ray Robinson (outro grande lutador da época) e alcançando o título mundial dos pesos-médios e uma descida brusca, onde o homem jamais derrubado nos ringues termina como um gordo velho solitário e ignorante, vendendo as jóias de seu cinturão para pagar advogados, esmurrando paredes frias de uma cela minúscula e apresentando-se como comediante de quinta em bares quaisquer pela cidade.
Scorsese nos mostra, então, um conto tão belo quanto marcante. Utiliza-se para isso de um protagonista que é um típico anti-herói (figura comum nos filmes da época. Esse papo de mocinho e vilão não rola), que é tão distante o possível de Rocky Balboa (em alta na época). Afinal, quem é Jake La Motta? Um completo fracassado. Um homem cuja ignorância o tornou incapaz de aprender qualquer coisa com tudo que ocorreu ao longo de sua vida e que se permite terminar seus dias como um qualquer, sendo que podia ter sido alguém (é feita uma citação direta ao personagem de Marlon Brando em Sindicato de ladrões que levanta o mesmo posicionamento). De fato, ele não demonstra pontos positivos a seu respeito e muito menos qualquer explicação para ele ser desse jeito. E mesmo assim, La Motta é uma das melhores personagens da história do cinema. É incompreensível e fascinante ao mesmo tempo, tornando impossível uma não aproximação curiosa por parte de quem o assiste a sua figura. Grande parte dessa estranha empatia vem, logicamente, do trabalho de mestre de Robert De Niro. Um exemplo clássico de atuação do método (escola de atuação em que o ator não deve interpretar o personagem e sim vivê-lo) há uma entrega completa à personagem, que fica bem evidente na profunda transformação física pela qual o ator passa ao longo do filme, desde o La Motta musculoso no auge de sua forma física ao gordo decadente. De Niro ganhou o seu Oscar de melhor ator por este filme, numa interpretação que é, no mínimo, inesquecível.  
Para maximizar o clima do filme, o longa é filmado em um belo preto e branco, que o torna muito mais sóbrio e triste (também apropriado às décadas de 40 e 50 nas quais o filme passa) e que permite que a explosão de violência, sangue e suor que acontece a todo o momento em surtos constantes e tão equilibrados como uma dança se torne mais poética sem deixar de ser feroz. Nos ringues, a fotografia permite que os momentos de glória e perda de La Motta sejam opostos. Nas vitórias, é tudo claro e nítido. Nas derrotas, o clima do ringue é quase infernal, com imagens distorcidas remetendo a calor e um ambiente esfumaçado e cheio de sangue. A edição dita o ritmo que pode ser lento ou ágil, dependendo da circunstância e da intensidade do momento, contrapondo momentos quase líricos a momentos de selvageria.  
Sendo assim, Touro indomável exibe a força máxima do cinema. O auge de um diretor e de seu protagonista, um dos melhores (talvez o melhor) filme dos anos 80, uma das mais notáveis produções artísticas do cinema e um conto moderno que já nasceu clássico. Como o movimento do qual Touro indomável faz parte já estava enfraquecido, o jamais derrubado Touro do Bronx acabou sendo abatido, injustamente, pelo belíssimo Gente como a gente no Oscar de 1981, protagonizando um dos casos mais clássicos e evidentes de injustiça do Oscar, que tirou praticamente tudo de suas mãos, incluindo ator coadjuvante (Joe Pesci foi indicado, mas perdeu para Timothy Hutton), melhor filme e principalmente melhor diretor. Por mais que Scorsese tenha recebido o prêmio depois (mais de 20 anos depois) por Os infiltrados, é evidente e inegável que seu melhor desempenho tenha sido aqui.  

Leia também: Hugo

Lucas Moura