segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Touro Indomável - não menos que genial


Entre o fim dos anos 60 e toda a década de 70, instalou-se em Hollywood um movimento cinematográfico liderado por jovens atores, diretores e roteiristas, inspirados, sobretudo, nas diretrizes da nouvelle vague e afoitos por trazer uma forma nova de criação para o cinema americano, utilizando-se da exposição de temas mais sérios, violentos e sexuais, muitas vezes ultrapassando limites, quebrando noções de falsa moralidade, elevando um mundo “underground” de pessoas excluídas da sociedade e apresentando trabalhos tão frios quanto cruéis e realistas. O primeiro grande marco dessa geração foi a viagem alucinógena de Peter Fonda, Dennis Hooper e Jack Nicholson, no road movie Sem destino (Easy Rider, 1969) que abriu definitivamente as portas da contra-cultura, dos anti-heróis e do cinema autoral para a sétima arte americana. Durante os anos que se passaram, quase toda a produção cinematográfica estava diretamente relacionada a esse movimento que atingia uma grande margem de espectadores, em sua maioria jovens, ansiosos por verem uma digna representação de sua geração nas telas. No entanto, todo carnaval tem seu fim.
Aos poucos, a Nova Hollywood (como eram chamadas) foi perdendo força (lê-se dinheiro) quando o público em geral passou a se cansar da excessiva densidade psicológica a qual ficavam expostos. Dessa forma, não havia mais interesse por parte das grandes produtoras em financiar filmes tão viscerais e, aos poucos, o movimento foi perdendo a força. Diria que uma grande marca desse declínio foi a derrota d Apocalypse Now para Kramer vs. Kramer, no Oscar de 1979. Era o início do fim. Antes que o movimento em si terminasse (mantendo, no entanto, seu legado), Martin Scorsese (um dos principais diretores desse período) trouxe ao mundo este que é um de seus melhores trabalhos, um dos melhores filmes dos anos 80 e uma grande homenagem ao cinema de toda essa geração: Touro indomável (Raging bull, 1981).
Touro indomável, em termos de roteiro, é bem simples. É a vida de Jake La Motta (Robert De Niro), o “touro do Bronx”. La Motta é uma pessoa real, e foi um grande lutador de boxe na década de 40. O filme vai explorar, então, todos os traços de sua confusa personalidade, uma pessoa extremamente violenta, agressiva, intolerante e confusa, incapaz de manter uma relação estável com alguém, egocêntrico demais para perceber que o mundo não gira apenas em torno de si e que não sabe se comunicar ou muito menos expressar seus sentimentos confusos, conturbados e, às vezes, indecifráveis, de outra forma que não seja através dos punhos. A inconstância e a mentalidade violenta o tornam quase insuportável e o afastam até mesmo de seu irmão, Joey (Joe Pesci), que também foi seu empresário durante muitos anos e que o fez chegar à posição de destaque no boxe mundial, e de sua mulher, Vickie (Cathy Moriarty, com uma beleza clássica), por quem sente um ciúme doentio (fundamentado pela sua incapacidade sexual). Dessa forma, La Motta segue pelo filme como se estivesse subindo e descendo uma ladeira: uma grande subida inicial, encontrando sua futura esposa, firmando-se no boxe, assumindo uma rivalidade com Sugar Ray Robinson (outro grande lutador da época) e alcançando o título mundial dos pesos-médios e uma descida brusca, onde o homem jamais derrubado nos ringues termina como um gordo velho solitário e ignorante, vendendo as jóias de seu cinturão para pagar advogados, esmurrando paredes frias de uma cela minúscula e apresentando-se como comediante de quinta em bares quaisquer pela cidade.
Scorsese nos mostra, então, um conto tão belo quanto marcante. Utiliza-se para isso de um protagonista que é um típico anti-herói (figura comum nos filmes da época. Esse papo de mocinho e vilão não rola), que é tão distante o possível de Rocky Balboa (em alta na época). Afinal, quem é Jake La Motta? Um completo fracassado. Um homem cuja ignorância o tornou incapaz de aprender qualquer coisa com tudo que ocorreu ao longo de sua vida e que se permite terminar seus dias como um qualquer, sendo que podia ter sido alguém (é feita uma citação direta ao personagem de Marlon Brando em Sindicato de ladrões que levanta o mesmo posicionamento). De fato, ele não demonstra pontos positivos a seu respeito e muito menos qualquer explicação para ele ser desse jeito. E mesmo assim, La Motta é uma das melhores personagens da história do cinema. É incompreensível e fascinante ao mesmo tempo, tornando impossível uma não aproximação curiosa por parte de quem o assiste a sua figura. Grande parte dessa estranha empatia vem, logicamente, do trabalho de mestre de Robert De Niro. Um exemplo clássico de atuação do método (escola de atuação em que o ator não deve interpretar o personagem e sim vivê-lo) há uma entrega completa à personagem, que fica bem evidente na profunda transformação física pela qual o ator passa ao longo do filme, desde o La Motta musculoso no auge de sua forma física ao gordo decadente. De Niro ganhou o seu Oscar de melhor ator por este filme, numa interpretação que é, no mínimo, inesquecível.  
Para maximizar o clima do filme, o longa é filmado em um belo preto e branco, que o torna muito mais sóbrio e triste (também apropriado às décadas de 40 e 50 nas quais o filme passa) e que permite que a explosão de violência, sangue e suor que acontece a todo o momento em surtos constantes e tão equilibrados como uma dança se torne mais poética sem deixar de ser feroz. Nos ringues, a fotografia permite que os momentos de glória e perda de La Motta sejam opostos. Nas vitórias, é tudo claro e nítido. Nas derrotas, o clima do ringue é quase infernal, com imagens distorcidas remetendo a calor e um ambiente esfumaçado e cheio de sangue. A edição dita o ritmo que pode ser lento ou ágil, dependendo da circunstância e da intensidade do momento, contrapondo momentos quase líricos a momentos de selvageria.  
Sendo assim, Touro indomável exibe a força máxima do cinema. O auge de um diretor e de seu protagonista, um dos melhores (talvez o melhor) filme dos anos 80, uma das mais notáveis produções artísticas do cinema e um conto moderno que já nasceu clássico. Como o movimento do qual Touro indomável faz parte já estava enfraquecido, o jamais derrubado Touro do Bronx acabou sendo abatido, injustamente, pelo belíssimo Gente como a gente no Oscar de 1981, protagonizando um dos casos mais clássicos e evidentes de injustiça do Oscar, que tirou praticamente tudo de suas mãos, incluindo ator coadjuvante (Joe Pesci foi indicado, mas perdeu para Timothy Hutton), melhor filme e principalmente melhor diretor. Por mais que Scorsese tenha recebido o prêmio depois (mais de 20 anos depois) por Os infiltrados, é evidente e inegável que seu melhor desempenho tenha sido aqui.  

Leia também: Hugo

Lucas Moura 

Nenhum comentário:

Postar um comentário