sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Sobre alguns livros em 2021


 A
qui estamos mais um dia, sob o olhar... ano pra comentar sobre os livros de que mais gostei no último ano, e também, por que não, falar um pouco sobre os últimos 365 dias que vivemos e aos quais sobrevivemos. 2021 foi intenso, foi uma verdadeira montanha russa, não foi fácil, mas foi mais um ano para ficar na memória. Começamos a nos vacinar contra a COVID-19, nos protegemos dessa praga, enquanto víamos a praga presidencial atrasar a vacinação e boicotar de tudo quando foi forma a imunização dos brasileiros contra o coronavírus. Uma CPI foi um dos maiores espetáculos do ano, enquanto eram descobertos crimes praticados pelo Governo Federal, com denúncias de tentativa de cobrança de propina na compra de vacinas de qualidade duvidosa, até hoje não aprovadas pela ANVISA. A segunda onda da pandemia foi implacável no Brasil e chegou a levar mais de três mil vidas por dia. Mortes, caos, sistema de saúde colapsado e cenas que até então eram inimagináveis, como a falta de oxigênio em Manaus e a falta de sedativos por todo o País. Enquanto isso, muito pouco foi feito em termos de isolamento social - os governos estaduais e municipais decretavam toques de recolher, enxugando gelo para evitar lockdowns - e o que nos salvou mesmo foi a vacinação, que após alguns meses avançando lentamente, conseguiu ser massiva no segundo semestre. Alívio, esperança. Fé na sobrevivência, na ciência, no SUS.
Em 2021 vi muito menos filmes do que queria, mas vi alguns ótimos, sobre os quais espero poder falar por aqui em outra ocasião. Por outro lado, consegui manter um bom ritmo de leitura, apesar do tempo escasso, muito consumido pela necessidade de estudar. Ao todo, foram treze livros concluídos e três abandonados, sendo que desejo concluí-los no próximo ano. Gostei muito dos treze, sendo um deles Sagarana, lido pela terceira vez (motivo de não colocá-lo na lista de preferidos, já que ele já foi muito comentado neste blog), e outro, Primeiras estórias, encerrado depois de quase dez anos lendo seus contos em suaves parcelas. Por fim, antes de discorrer sobre os cinco livros de que mais gostei nesse ano, quero desejar um feliz ano novo, cheio de saúde, realizações, paz de espírito, leveza e FORA BOLSONARO.

5. Crônica de uma morte anunciada (Gabriel García Márquez, 1981)
Eita Gabo... Gabo é necessário, Gabo é imortal, Gabo é único. O realismo fantástico do colombiano que conquistou um Nobel e a admiração de meio mundo é excelente, independentemente do tema abordado, do tamanho do livro ou da época em que se ambiente a narração. Nesse livro relativamente curto, de menos de 200 páginas, inicialmente temos apenas o cruzamento de informações sobre um crime motivado por desonra, informações ora confiáveis, ora confusas, enquanto o leitor tenta montar o quebra-cabeças para entender como ocorreu o assassinato de Santiago Nasar. Mas aqui não temos apenas um romance construído com rigor jornalístico, mas também uma narração envolvente, cheia de poesia e sensualidade, que transborda através de personagens típicas da literatura de García Márquez.
Nota: 10
4. Há uma lápide com o seu nome (Camilla Canuto, 2021)
Fiquei muito feliz ao ver uma autora sergipana, jovem, lançar seu primeiro livro. Não conheço Camilla pessoalmente, só por interações em redes sociais, mas vibrei com o lançamento de seu livro como se fosse um amigo íntimo. Mais feliz ainda fiquei quando enfim li o romance, que devorei em um dia, mas ruminei por quase uma semana, tamanho seu impacto. A estória da protagonista Adelaide poderia ser a de incontáveis mulheres, seja em Sergipe ou qualquer canto do Brasil ou do mundo: depois de uma gravidez muito precoce na adolescência, se torna mãe de família e abdica de si e de seus sonhos, apagada pelo patriarcado e pela imposição de ocupar o papel de mãe e esposa. Além da narração habilidosa que gera um texto fluido e delicioso de ser lido, o livro me conquistou pela alegria de reconhecer todas as referências locais de Aracaju - como é bom ter conterrâneo escritor.  Em resumo: esse livro deve e merece ser lido por muita gente. Sem mais.
Nota: 10
3. Primeiras estórias (João Guimarães Rosa, 1962)
O quarto livro de Guimarães Rosa (quinto, se contar o livro de poemas Magma, e sétimo, se contar a divisão sofrida por Corpo de Baile) é o livro ideal para ser introduzido na obra rosiana. São 21 contos, a maioria variando entre oito e dez páginas, e consideravelmente mais simples e fáceis do que as estórias presentes nos livros anteriores - sério, não aconselho a ninguém começar a ler Guimarães Rosa por Grande sertão: veredas. Dentre os 21 contos, temos aqui A terceira margem do rio, que deve ser o seu mais conhecido (talvez empatado com A hora e a vez de Augusto Matraga, que está em Sagarana) e traz a mítica narrativa de um homem que larga tudo para passar a vida numa canoa estreita, remando de cima a baixo um curto trecho de rio, sem que ninguém saiba o motivo. Rosa sendo Rosa: as poucas páginas do conto se abrem para inúmeros significados e possibilidades.
Nota: 10
2. A festa do bode (Mario Vargas Llosa, 2000)
Esse incrível romance de Vargas Llosa trata do fim de uma das ditaduras mais longevas e cruéis da América Latina, comandada pelo generalíssimo Rafael Trujillo na República Dominicana entre 1930 e 1961. O livro acompanha três frentes: a do próprio Trujillo, em seu cotidiano metodicamente planejado, a do grupo que planeja um atentado contra o ditador e a de Urania Cabral, filha de um dos homens mais leais a Trujillo, que caíra em desgraça antes mesmo da queda do regime. Ao longo de 450 páginas somos guiados pela narração magistral de Vargas Llosa, que mistura ficção e fatos históricos sem deixar de ser coeso ou coerente em nenhum momento, além de conseguir entrelaçar sutilmente as três frentes narrativas do romance. Não é difícil perceber porque A festa do bode é um dos livros mais importantes de Vargas Llosa: preciosa pesquisa histórica fundamentando a criatividade de uma das mais brilhantes figuras da literatura contemporânea.
Nota: 10
1. Os vivos e os outros (José Eduardo Agualusa, 2020)
O queridinho entre os queridinhos de 2021 foi uma agradável surpresa. Ganhei esse livro de presente de uma amiga muito querida e o li há pouco mais de um mês. Terminado no fim de 2019, poucos meses antes do início da pandemia de COVID-19, o romance parece prever o cenário de isolamento que se impôs em todo o mundo a partir de março do ano passado. Os vivos e os outros se passa na Ilha de Moçambique, onde renomados escritores de alguns países africanos estão reunidos para um festival literário. Um dia antes de começar o festival uma tempestade sem proporções atinge a região, deixando a ilha totalmente isolada, sem eletricidade, sem sinal de telefone ou internet, e sem possibilidade de atravessar a ponte que liga a ínsula ao continente. Sem o contato com o mundo exterior, todos mergulham em reflexões coletivas sobre literatura, arte, o continente e mesmo a vida, mas também descobrem que é preciso olhar para dentro de si, na tentativa de resolver questões pessoais - principalmente quando surgem "os outros". Como assim? Prefiro que a descoberta seja feita com a leitura do livro, e não com meus comentários. Esse livro é incrível, sério. É prosa, mas é tão poético que apenas isso seria suficiente pra justificar o quanto ele é encantador. Mas há mais ainda. Muito mais.
Nota: 10



Luís F. Passos

sábado, 2 de outubro de 2021

Livros pra outubro


Lituma nos Andes
(Mario Vargas Llosa, 1993)
O cabo Lituma, velho conhecido dos apreciadores da literatura de Vargas Llosa, aparece novamente, dessa vez em missão em altas altitudes. Trabalhando apenas com seu subordinado, o guarda Tomás Carreño, num posto com estrutura débil, que fica num acampamento de operários da construção civil, Lituma está diante de um caso complicado que mistura investigação criminal com histórias sobrenaturais: o desaparecimento seriado de homens do acampamento e da região. Seriam vítimas de crimes comuns, da guerrilha socialista Sendero Luminoso, que aterrorizava a região, ou de míticas criaturas que habitam as montanhas? O cabo enfrenta diversas dificuldades: a falta de pessoal, falta de recursos e de colaboração dos trabalhadores, que não confiam na Guarda Civil. Quase todos os capítulos do livro são trazidos em três partes: a primeira acompanhando Lituma e suas investigações, a segunda mostrando ataques dos guerrilheiros e a terceira narrando as desventuras amorosas do guarda Carreño com uma mulher que marcou sua vida - e assim vemos mais uma vez a maestria da escrita de Mario Vargas Llosa, conduzindo o leitor com bastante naturalidade entre diferentes épocas e locais, construindo o quebra-cabeças dos mistérios de Lituma nos Andes.
Nota: 10


A morte e a morte de Quincas Berro D'água
(Jorge Amado, 1961)
Esse pequeno, porém delicioso e pitoresco livro de Jorge Amado nos mostra os estranhos eventos que envolvem as duas mortes de Quincas Berro D'água, o rei dos vagabundos da Bahia. Outrora um funcionário público exemplar e cidadão da respeitosa classe média soteropolitana, Quincas vivia numa zona de Salvador em meio a pescadores, estivadores, bêbados, malandros e prostitutas. Mandou a família e as convenções sociais para os ares e passou a vadiar e se embebedar a todo o tempo - só bebia álcool, e ganhou o apelido Berro D'água depois de se assustar por beber água e dar um grito que estremeceu a Cidade Alta. No dia de seu aniversário, Quincas é encontrado morto por seus amigos bêbados, e a família decide fazer um enterro digno para enterrá-lo como o respeitável Joaquim Soares da Cunha; mas com umas doses de cachaça e outras tantas de loucura, os companheiros de malandragem carregam o defunto por vielas escuras, numa aventura onírica onde se confunde o que é real e o que é efeito do álcool. Livro que se tornou um filme maravilhoso com o inesquecível Paulo José no papel de Quincas. 
Nota: 10

Morte e vida severina
(João Cabral de Melo Neto, 1956)
"O meu nome é Severino, não tenho outro de pia...". Assim o retirante Severino (que é Severino de Maria, sendo Maria a Maria do finado Zacarias) se apresenta a quem ouve a narração de sua saga partindo do interior para o Recife, fugindo da seca e da miséria. Através da poesia rica de João Cabral, temos o engajamento social sobre a vida brasileira, padecendo pelo descaso dos poderosos e sucumbindo de modo cruel e dramático, tendo a morte como companhia constante. Chamada pelo autor de "auto de Natal pernambucano", a obra faz convergências com o nascimento do menino Jesus, numa releitura laica em que a redenção se daria não pela fé, mas pelo trabalho. Apesar disso, a esperança parece distante: "Essa cova em que estás / com palmos medidas / é a conta menor / que tiraste em vida (...) é a parte que te cabe deste latifúndio". O magistral poema se tornou peça de teatro em 1965, musicado por um jovem de 21 anos chamado Francisco Buarque de Holanda. Conhecem?
Nota: 10

Noites do Sertão
(João Guimarães Rosa, 1956)
Em 1956, meses antes de lançar Grande sertão: Veredas, Guimarães Rosa havia publicado seu segundo livro, uma coleção de sete novelas chamada Corpo de Baile. Entre 1964 e 1965, o autor dividiu a obra em três livros: Manuelzão e Miguilim, com duas novelas, No Urubuquaquá, no Pinhém, com três, e por fim Noites do Sertão, com duas. Este último traz duas estórias grandes, densas e que se destacam na obra roseana por abordarem a sexualidade das personagens, mostrada como força arrebatadora que vai de encontro a preconceitos e sobrepuja convenções sociais. Tanto Lão-Dalalão quanto Buriti, títulos das duas novelas, são inesquecíveis. Recheadas de todos os bons ingredientes que Guimarães Rosa gostava de usar: neologismos, arcaísmos, frases de efeito e as marcas culturais e geográficas do sertão mineiro - em Buriti, uma árvore de quase 70 metros de altura dá nome à estória e ao local em que se passa. Uma personagem vegetal envolta por mistérios e segredos, tal como todo o universo do Corpo de baile.
Nota: 10

Luís F. Passos

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Filmes pro final de semana - 24/09


 1. Drive (2011)
Drive  centra-se na relação entre um homem misterioso, o qual nem sabemos o nome, interpretado por Ryan Gosling, que se encontra perdidamente apaixonado por sua jovem vizinha de modo a se dispor a protegê-la de todos os perigos que a envolvem, relacionados a seu marido recém saído da prisão e da máfia que os cercam. Tecnicamente falando, Drive é impecável. A fotografia é belíssima e acompanha as grandes mudanças de tom pelas quais o filme passa. Se num primeiro momento tudo é a magia da descoberta do amor, com paisagens bucólicas e ensolaradas ao entardecer, a metade final é negra, escura, sórdida e violenta. A violência é elevada aos limites conforme o conto torna-se cada vez mais perigoso e envolvente. A relação amorosa entre Ryan Gosling e Carey Mulligan é de uma pureza e uma sensibilidade que contrasta a todo o momento com o extremismo da violência onde aqueles personagens se encontram, tendo este antagonismo alcançado o ápice na já clássica cena do elevador. É quase um conto de fadas na verdade, onde um “príncipe encantado” luta a qualquer preço para defender sua “donzela” em perigo. A diferença é que no lugar de uma armadura de metal temos uma jaqueta prateada e em vez de cavalos brancos, carros envenenados dispostos a intensas cenas de perseguições.
Nota: 10

2. Namorados para sempre (Blue Valentine, 2010)
Malditos tradutores. Malditos. Transformar o título de um sério e triste drama num título de filme adaptação de Nicholas Spark é o fim. Isso porque Namorados para sempre não é, nem de longe, uma história de amor em que todos serão felizes para sempre e blablablá. O que temos aqui é o registro do fim de um casamento, mostrando desde o começo do namoro até o início da ruína do relacionamento. Cindy (Michelle Williams) trabalha num hospital, tem um emprego estável e com chances de crescimento, enquanto Dean (Ryan Gosling) está desempregado e faz bicos - um dos motivos do desgaste da relação. Muitas cenas são ambientadas num motel, para onde eles vão no dia dos namorados para tentar salvar o casamento, mas lá se demonstra ao máximo o quanto tudo está perdido; são momentos de muita tensão em que se vê o grande talento de dois jovens atores, alguns dos maiores nomes dessa nova geração.
Nota: 10

3. 
Closer - perto demais (Closer, 2004)
É impressionante a qualidade e a capacidade de impactar de Closer. Dirigido por ninguém menos que Mike Nichols, veterano diretor de A primeira noite de um homem e Quem tem medo de Virginia Woolf?Closer aborda quatro pessoas em Londres e suas relações de amor, ciúme e ódio entre elas. A primeira é a fotógrafa Anna (Julia Roberts), por quem o escritor frustrado Dan (Jude Law) se apaixona e cria uma certa obsessão. Indiretamente graças a Dan, Anna conhece o médico Larry (Clive Owen), com quem se casa, mas mais tarde mantém um caso com Dan. Nesse vai e vem, há também a stripper Alice (Natalie Portman), com quem Dan mantinha um relacionamento, e que também vai se aproximar de Larry. Um drama sólido e intenso que vai muito além da questão de relacionamentos e traições; uma grande produção coroada com a música The blower's daughter.
Nota: 10


4. 
O profissional (Leon, 1994)
A violenta jornada da jovem Mathilda (Natalie Portman) na companhia de seu amigo (?) Leon (Jean Reno), um assassino profissional, em busca de uma vingança quase impossível contra a polícia corrupta que matou toda sua família pontua um dos filmes mais interessantes dos anos 90. Intenso do começo ao fim, O profissional representa um filme de ação de qualidade, com algumas doses esporádicas de drama, que inclui um relacionamento incomum entre as personagens e culmina com uma conclusão épica. Também marcante por ser a estreia de Natalie Portman nos cinemas, numa personagem juvenil que disputa com a Iris de Jodie Foster em Taxi Driver pelo posto de mais complexa. Altamente recomendável.
Nota: 10

5. Tubarão (Jaws, 1975)
Anos antes de Alien, Steven Spielberg já trabalhara com a ideia do monstro que não pode ser visto - neste caso, que passa boa parte do filme oculto. Estamos em Amity Island, tranquila cidade de veraneio da Costa Leste, prestes a ser invadida por turistas na estação mais quente do ano. Quando o policial Martin Brody ((Roy Scheider) decide investigar com mais atenção a morte de banhistas, passa a acreditar que as praias representem um perigo para seus frequentadores. Desacreditado pelas autoridades locais, Brody busca a ajuda do especialista Matt Hooper (Richard Dreyfuss) e do insano pescador Quint (Robert Shaw), um velho lobo do mar, e juntos os três vão juntando evidências, à medida em que novos ataques vão acontecendo. A luta contra um inimigo poderoso e gigantesco é comparável à história de Moby Dick, graças à criatividade e competência de Spielberg, nesse primeiro de seus muitos sucessos. E assim como suas personagens, o próprio diretor enfrentou desafios imensos para produzir o filme - o mais conhecido deles foi o problema com o tubarão, que teve vários defeitos ao ser posto na água e por isso acabou ficando tão oculto nas filmagens. Mas verdade seja dita, o fato do monstro permanecer escondido na maior parte do tempo tornou o longa muito mais interessante e assustador.
Nota: 10

Luís F. Passos

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Filmes pro final de semana - 17/09


1. Rosa e Momo (La vita davanti a sé, 2020)
Depois de mais de uma década sem estrear nas telonas, a estrela Sophia Loren dá um tempo na aposentadoria para brilhar em um filme feito pela Netflix. Rosa e Momo é baseado no livro A vida pela frente, que já fora adaptado para o cinema em 1977 como Madame Rosa (La vie devant soi), e acompanha a história de uma sobrevivente de Auschwitz, já idosa e ex prostituta, que cuida de filhos das profissionais do sexo. Rosa recebe de um amigo de longa data o desafio de cuidar de um menino senegalês órfão e muito rebelde, envolvido com pequenos delitos e que chega à sua casa causando muito conflito. O filme usa de muitos clichês, apela pro sentimentalismo, mas é lindo. Lindo, bem feito, muito bem atuado por Sophia Loren e pelo jovem Ibrahima Gueye. Ótima pedida pra se emocionar.
Nota: 8,5/ 10

2. História de um casamento (Marriage story, 2019)
Eu não sou a melhor pessoa pra falar desse filme porque ele me deixa um tanto incapaz de analisá-lo racionalmente, tamanha a emoção que me proporcionou. História de um casamento foi um dos destaques do Oscar do ano passado e mais uma prova da força da Netflix para concorrer com os estúdios de Hollywood. O filme acompanha a crise do casamento e divórcio do jovem casal Charlie (Adam Driver) e Nicole (Scarlett Johansson), ele um promissor diretor de teatro e ela uma ótima atriz que deixou a carreira em segundo plano para cuidar da família. O desejo de seguir novos caminhos profissionais leva Nicole de volta para a casa da mãe, na Califórnia, enquanto Charlie argumenta que não pode deixar Nova York por conta de seu trabalho e da ascensão de seu nome perante público e crítica. O divórcio que seria amigável se torna uma feroz batalha a partir do momento em que Nicole contrata uma agressiva advogada de divórcios que torna o litígio mais complicado, tanto pela parte legal quanto por ajudar Nicole a entender melhor o processo de desgaste da relação. O filme consegue fugir do convencional, conduzindo numa narração envolvente e emocionante que não é nada piegas. Direção e elenco primorosos entregando um filme sensacional.
Nota: 10

3. Chico, artista brasileiro (2015)
O documentário do diretor Miguel Faria Jr. tem estrutura bastante semelhante ao de Vinícius (2005), longa sobre o poetinha que Faria Jr dirigiu e é um dos filmes mais vistos do gênero no Brasil. O próprio Chico Buarque conduz a narração de sua vida, na época beirando os setenta anos de idade e há muito consolidado como um dos maiores artistas da história do país. Cantor, compositor, músico, dramaturgo, romancista, sambista e notável peladeiro, Francisco Buarque de Holanda se destaca no cenário cultural desde a década de 60, quando lançou A banda, uma de suas músicas mais populares até hoje. Enfrentou o Regime Militar e foi exilado, participando ativamente do movimento de redemocratização. O filme conta com depoimentos de familiares e amigos, além de participações musicais de parceiros e de artistas influenciados por Chico.
Nota: 10

4. Mussum, um filme do cacildis (2018)
A história de Antônio Carlos Bernardes Gomes, (muito) mais conhecido como Mussum, é contada por Lázaro Ramos, que narra o documentário de maneira muito instigante (me fez lembrar a narração do clássico Ilha das Flores), mostrando as diversas facetas do artista. Sambista de alto nível, dono de voz ótima e suingue único ("o melhor tocador de reco-reco que já existiu", dizem em certo momento do filme), Antônio ingressou na vida artística através do samba, sendo um dos criadores do grupo Os originais do samba, onde ficou famoso, não só pela música, mas pelo carisma, jeito engraçado e palavras que se tornaram marcas registradas - foi depois de fazer uma brincadeira com Grande Otelo que ganhou deste o apelido de Mussum, que posteriormente adotou como nome artístico. O documentário peca por não explicar melhor como se deu o ingresso de Mussum no humor, mas merece o crédito de tratar da questão do racismo, que era levantada por ele e pelos Trapalhões - de uma forma que hoje é considerada não muito ortodoxa, mas há de se considerar a época e o contexto. Aflitivo ao falar do final da vida de Mussum, o filme mostra o quanto o artista foi gigante e ainda permanece vivo no imaginário popular brasileiro.
Nota: 8,5/ 10

5. O homem que sabia de menos (The man who knew too little, 1997)
Vamos ver comédia pastelão porque a vida não tá fácil e precisamos dar boas gargalhadas. Bill Murray interpreta Wallace, um cara bem pouco inteligente que viaja para Londres, para passar o aniversário com seu irmão James (Peter Gallagher), e ganha deste um ingresso para uma noite de teatro integrativo, em que o pagante entra num drama criminal. Acontece que Wallace acaba se metendo num crime verdadeiro e de grandes proporções para a diplomacia europeia, mas passa boa parte da história sem fazer ideia da gravidade do enredo em que havia entrado. Como eu disse, aqui temos um pastelão, e dos bons: engraçado a todo o tempo, despretensioso, simples: o melhor tipo de filme para relaxar e não ter trabalho nenhum de pensar pra entender o que está acontecendo.
Nota: 8,0/ 10

Luís F. Passos

terça-feira, 1 de junho de 2021

Livros para junho

 Saudações aos navegantes, meninos e meninas e menines. Depois de meses, voltamos, mesmo que não seja com uma frequência constante e certa, mas estamos aqui para um sinal de vida, recomendações de livros bons e o desejo de que você, seja quem for que esteja lendo, esteja bem. Se estiver no Brasil, sabemos que estar bem é um termo muito forte e difícil de ser totalmente sincero. Mas espero que esteja bem, que goste das recomendações, e fique à vontade para me recomendar algo também. Se cuide e até logo mais.


1. Ninguém escreve ao coronel (Gabriel García Márquez, 1969)
Um dos primeiros livros do nosso vencedor de Nobel preferido é relativamente curto, mas inesquecível. A novela que acompanha um coronel reformado e decadente, que vive com sua velha e asmática esposa e um galo de brigas magrelo deixado por seu filho falecido é capaz de despertar vários sentimentos no leitor: pena, indignação, mas também arranca umas boas risadas. O magro coronel vive à espera de correspondências do exército com a resposta ao seu pedido de pensão por sua carreira militar, sob olhares compadecidos dos vizinhos e conhecidos. O livro é narrado de modo bastante realista - ainda não era o realismo fantástico tão bem desenvolvido por Gabo - mostrando pobreza e a história repleta de guerras e revoluções da Colômbia, que poderia ser de vários outros países latinos. A estória é deliciosa, fluida e com um final espetacular com uma palavra inesperada. Leia e descubra.
Nota: 10

2. 
O Poderoso Chefão (Mario Puzo, 1969)
O  grande romance da máfia. A grande estória da máfia. Livro que inspirou um dos melhores e mais queridos filmes de todos os tempos, O Poderoso Chefão acompanha a Família Corleone, a mais poderosa das famílias sicilianas que dominam a máfia de Nova York. Ambientada no fim da década de 40, pós 2ª Guerra Mundial, mostra a transformação dos negócios da família com a velhice de Don Vito, a presença de seus filhos nos negócios e a constante tensão com as outras famílias e a polícia - sim, praticamente igual ao primeiro filme da trilogia. Para quem assistiu aos filmes, o livro contém basicamente todo o primeiro filme e uma parte do segundo. A fidelidade dos filmes ao livro é imensa, afinal o autor Mario Puzo foi coautor dos roteiros dos filmes. E o romance é bom. Deus do céu, que livro bom!
Nota: 10

3. Contos vol. 1 (Ernest Hemingway, publicados originalmente entre 1927 e 1961)
Há pouco que eu possa falar sobre essa reunião de contos de Hemingway - desnecessário dizer o excelente contista que ele era. Esse primeiro volume (de três lançados no Brasil pela editora Bertrand) inicia com contos protagonizados por Nick Adams, célebre personagem autobiográfico de Hemingway, mas percorre diversos cenários recorrentes na obra do autor: Estados Unidos, Europa, Oriente Médio e África, desfilando por temas também recorrentes: caça, pesca, bebedeira, amores intensos. É impossível dissociar a escrita de Hemingway de sua vida pessoal, logo esses contos são relatos fieis da época, da juventude do escritor, de parte de seu exílio junto à brilhante geração perdida dos anos 1920.
Nota: 9,5/ 10

4. O Primo Basílio (Eça de Queiroz, 1878)
O motivo que me levou a ler uma das principais obras de Eça de Queiroz foi deveras aleatório: o encanto pelo trecho do livro que é citado por Arnaldo Antunes no meio da música "Amor, I love you" de Marisa Monte. Mas eu estou dizendo isso só porque eu gosto de um rolê aletório. Vamos ao enredo: o livro é centrado na figura de Luísa, a jovem esposa do engenheiro e funcionário público Jorge. O típico casal de classe média, respeitado na pobre vizinhança e por amigos distintos e leais, é bem visto aos olhos da sociedade. Porém, como estamos falando de um romance realista, tem que ter algo de podre no reino da Dinamarca (de Portugal, no caso): o motor que propulsiona a estória é a chegada de Basílio, o charmoso primo de Luísa, que chega do Brasil muitos anos depois de se despedir da prima, com quem tivera um breve romance. Basílio volta a Lisboa justamente quando Jorge está numa longa viagem ao interior, e aproveita a ausência do marido da prima para seduzir Luísa, que vai descobrindo em si uma nova pessoa: seu interior, antes preenchido pelo pacato casamento, é ocupado pela abrasante paixão proibida que sente por Basílio. A aventura inconsequente se mostra cara demais quando Juliana, a amargurada empregada de Luísa, descobre a traição da patroa e passa a chantageá-la. Ao longo desta inesquecível estória de adultério, Eça de Queiroz constrói um sólido e ácido retrato da sociedade lisboeta do fim do século XIX.
Nota: 10

Luís F. Passos

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Sobre 2020, o alçapão do inferno e alguns livros


D
urante o ano eu e outros tantos dissemos, em tom de brincadeira: "coitado de quem tiver que fazer a retrospectiva 2020...". Bem, se eu dizia isso, não sou eu que vou fazer uma retrospectiva aqui. Mas, porém, contudo, no entanto e todavia, senti a necessidade de manter o hábito, abandonado apenas em 2018, de falar sobre o ano que se encerra. E esse 2020... ah, esse menino maroto que foi 2020... esse peste que parece aqueles pirralhos que o pai puxa pela orelha e a mãe bota no colo pra esquentar o traseiro. 366 dias, 366 vezes em que nosso corpo celeste que temos como casa deu a volta ao redor de si mesmo enquanto corria para dar uma volta ao redor do astro rei. Bem, pega a pipoca, o lenço de papel, a água e vamos juntos rir e chorar um pouco falando sobre um ano que não vamos conseguir esquecer.
Obviamente o grande assunto de 2020 foi a pandemia. Mas vamos tentar lembrar do que teve antes: nosso presidente querendo treta com Irã e alguns dias de piadas na internet sobre a possibilidade de guerra. "O que esse homem ainda vai inventar?" Eita, gente, não faltou coisa. Enquanto se cavava a sujeira do miliciano e seus filhos, eles começaram a incentivar os apoiadores em atos antidemocráticos que pediam fechamento do Congresso, do STF e outras barbaridades. Aí, em fevereiro, o tal vírus descoberto na China começou a se espalhar pelo mundo. E a gente aqui fazendo piada, achando que isso não chegaria aqui. Quantas referências ao corona e à cerveja Corona no carnaval? Mas no fim de fevereiro, ele chegou. Chegou com força, e duas semanas depois os governadores e prefeitos iniciaram as medidas de isolamento social para tentar conter a doença que foi oficialmente classificada como pandemia pela OMS no dia 11 de março. Bolsonaro, que já tinha dito que o medo do vírus era um histeria, foi à televisão no dia 24 de março para dizer que a Covid-19 é uma gripezinha - marco inicial da sabotagem promovida pelo presidente contra as ações do Ministério da Saúde e dos Estados. A partir daí os índices de isolamento começam a cair e percebemos que vinha um inferno pela frente. E como diz um amigo meu, o inferno tem alçapão: você acha que não dá pra piorar, mas a situação piora, e muito. Ataques à democracia, avanço do ataque à natureza com Amazônia e Pantanal em chamas, atraso na liberação do auxílio emergencial, desemprego, fome, desespero. E como não lembrar daquela reunião ministerial denunciada por Moro, o rato que pulou do navio que parecia prestes a naufragar? Era reunião ministerial ou de quadrilha?
Milhões de doentes, quase duas centenas de milhares de vidas perdidas - números que sabemos ser bem maiores, tamanha a subnotificação da Covid no Brasil. Aos poucos os números começaram a ganhar rostos conhecidos. Vi vários colegas e amigos adoecerem. Vi amigos perderem familiares. Atendi e continuo atendendo casos de Covid. Acabou que aprendi - todos aprendemos - a lidar não só com a doença mas também com o clima desesperador na pandemia. Em março, a incerteza, o medo de adoecer ou de contaminar alguém da família me fizeram chorar, assim como muitos outros profissionais que chegaram a sair de casa para proteger os seus. Sentimos medo da doença, perplexidade e raiva diante do mau comportamento de quem parecia ignorar o caos, e ódio de lideranças políticas que negavam e seguem negando a gravidade de uma doença capaz de matar e de deixar graves sequelas. Diziam que as pessoas iriam sair melhores da pandemia. Como? Indo pra festa e cagando e andando pra quem tava morrendo? 
O fato é que 2020 foi bizarro. Não só pela Covid, mas por muitos outros motivos. O que dizer de um ano que trouxe o rolê mais aleatório de Ronaldinho Gaúcho (a prisão!)? O ano da naja de Brasília, da chance do vira-lata caramelo ir pra nota de 200 reais. Um ano de muitos memes, óbvio, porque o brasileiro não deixa de rir da própria desgraça. Um ano de muitas perdas, não só para Covid, mas para outras doenças também. 2020 conseguiu levar até a imortal Olivia de Havilland, de 104 anos, última atriz viva do elenco de E o vento levou. Perdemos pessoas brilhantes da música, da literatura, do cinema, do esporte. Sentiremos falta de Flávio Migliaccio, Chadwick Boseman, Sean Connery, Diego Maradona, Quino, Kirk Douglas, Aldir Blanc, Moraes Moreira, Nicette Bruno, Tom Veiga, entre tantos outros. Pessoas tão necessárias nesses tempos difíceis, afinal, a arte sempre teve e terá a nobre função de deixar a vida mais leve, de nos distrair dos problemas, de nos fazer enxergar os problemas de um modo diferente. Precisamos e precisaremos ainda mais de arte para nos apoiar, afinal, todo o sufoco pelo qual passa o Brasil deve se manter por algum tempo e piorar nos próximos meses, já que as crises econômica e sanitária não têm previsão de resolução. É, gente, pelo visto vamos continuar descendo por alçapões, chegando ainda mais fundo no inferno ou no poço. Encerro aqui desejando saúde física e mental, força, amor, paz e dias cheios de sorrisos para todos. Que venha a vacina para que possamos nos ver e nos abraçar, e que venha o impeachment de Bolsonaro para que tenhamos motivo para comemorar por dias e dias seguidos. Fiquem com a lista dos cinco livros que mais gostei dentre os treze que li no ano de 2020.



5. 2001: uma odisseia no espaço, Arthur C. Clarke
Quando Stanley Kubrick se inspirou em um conto do escritor e cientista Arthur C. Clarke, os dois gênios se uniram para escrever as bases do que se tornaria um marco na ficção científica: eles começaram a trabalhar juntos e depois se separaram; Kubrick terminou o roteiro do filme e Clarke foi terminar seu livro. 2001 inicia na pré-história, há milhões de anos, quando um misterioso monólito surge num deserto e parece ser o catalisador da evolução de primatas humanoides. Milhões de anos depois, na era espacial, um monólito semelhante é encontrado sob a superfície lunar, motivando uma missão espacial que rumava a Júpiter e posteriormente a Saturno. Os cientistas David Bowman e Frank Poole comandam a nave Discovery, junto ao super computador HAL 9000, enquanto outros três tripulantes permanecem em um tipo de hibernação em máquinas especiais, para serem acordados apenas quando chegarem ao destino. Fatos extraordinários abalam a missão, justificando a palavra odisseia do título. O que temos aqui é uma obra incrível, sem paralelo, mostrando como poucas o poder da imaginação humana, a vontade humana de conhecer o que tem para dentro e além de nós, de nosso mundo, de nossa concepção de universo. Me cativou da mesma forma que o filme.
Nota: 10

4. O amor nos tempos do cólera, Gabriel Garcia Márquez
Livro muito comentado e lido em 2020, além de seu título ser usado no trocadilho "o amor nos tempos do corona" (eu mesmo usei bastante). Esse é um dos romances mais conhecidos do mestre Gabo, escrito nos anos 80 logo depois do ano sabático que o escritor se deu após ganhar o Nobel de literatura em 1982. Baseado numa história verdadeira - de seus pais - em que um rapaz apaixonado usava a rede de telégrafos para se comunicar com a amada, cujos pais se opunham ao romance, García Márquez narra uma história de amor e devoção que atravessou décadas. O telegrafista, violinista e poeta Florentino Ariza é um pobre rapaz que se apaixona por Fermina Daza, moça de família rica (apesar dos negócios de seu pai serem obscuros), e passa a se comunicar com ela por cartas durante alguns anos, até que pede sua mão em casamento - carta que demora 4 meses a ter resposta. Depois que o pai de Fermina descobre o namoro epistolar, manda a filha para a casa de parentes em lugares distantes, e é aí que a rede telegráfica é usada para a comunicação do casal. Fermina acaba se casando com um médico aristocrata, mas nem a distância e nem o tempo são capazes de pôr fim ao amor de Florentino. A magistral escrita de Gabriel García Márquez nos proporciona um romance interessante, bonito e até mesmo pitoresco - afinal, estamos falando do mestre do realismo fantástico.
Nota: 10

3. Sobre os ossos dos mortos, Olga Tokarczuk
Certamente minha maior e melhor surpresa literária, já que eu nunca ouvira falar do livro ou da autora, esse romance polonês me foi dado de presente em meu aniversário e me conquistou logo nas primeiras páginas. Nossa protagonista, Janina Dusheiko, é uma professora de inglês aposentada que vive numa região distante e pouco habitada da Polônia, marcada por invernos rigorosos, solidão e temporadas de caça agitadas. Dusheiko, entusiasta de astrologia e poesia inglesa, abomina a caça e é conhecida na vizinhança pela defesa dos animais - inclusive, é vegana, não consumindo nada de origem animal. Quando pessoas ligadas à caça começam a aparecer mortas, em crimes brutais e difíceis de serem explicados, Dusheiko levanta a suspeita de que os animais da região podem estar envolvidos nas mortes, já que sempre havia animais silvestres nas cenas dos crimes. Ao longo do livro a autora explora, além do tema da relação humana com os animais, temas como machismo, preconceito e pessoas que vivem à margem da sociedade. Com um texto fluido e muito envolvente, a obra prende o leitor do começo ao fim.
Nota: 10

2. Hibisco roxo, Chimamanda Ngozi Adiche
Agridoce é uma boa palavra para falar sobre esse romance incrível. A deliciosa narração de Chimamanda nos traz a jovem Kambili, uma adolescente nigeriana, filha de um dos homens mais ricos e poderosos do país. Seu pai, Eugene, é dono de jornal e empresário, e está ainda mais em destaque porque a Nigéria atravessa um delicado período político com a chegada de militares ao poder - a quem ele faz oposição. Mas o principal tema do livro é o impacto da chegada do catolicismo ao país; o pai de Kambili se converteu à Igreja Católica, abandonando as tradições locais, as quais chama de pagãs, chegando ao ponto de cortar todas as relações com seu pai. Seguimos com Kambili enquanto ela conhece a vida para além dos altos muros da mansão da família e do rígido controle do seu pai, especialmente quando ela passa a manter contato com uma tia professora e seus primos que não têm a mesma vida de conforto que ela. Livro denso, rico, muito emocionante. Imperdível.
Nota: 10

1. Por quem os sinos dobram, Ernest Hemingway
Provavelmente o melhor livro de Hemingway, esse foi o primeiro livro que li em 2020 e nenhum dos que vieram depois lhe tirou a posição de melhor livro lido no ano. Ao longo de mais de 600 páginas acompanhamos o americano Robert Jordan, combatente da Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos, que recebe a missão de explodir uma ponte na região de Segóvia. A narração acompanha poucos dias na vida do rebelde, mas são dias suficientes para que ocorra uma mudança importante em seu interior - uma pessoa seca, objetiva, calculista, alcançando a humanidade. Além de Jordan, outras personagens marcantes são apresentadas, todas elas fundamentais para o processo de mudança sofrido pelo protagonista. Esse livro maravilhoso é marcado pela sempre presente sinceridade do autor, e aqui, num nível ainda mais elevado que nas outras obras. Hemingway trabalhou como jornalista cobrindo a Guerra Civil Espanhola, e deixa transparecer em seu livro a crueza e horrores da guerra, e o que ela provoca nos corações dos homens.
Nota: 10

Luís F. Passos

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Filmes pro final de semana - 25/09 - Especial Almodóvar


1. Os amantes passageiros (Los amantes pasajeros, 2013)
Os amantes passageiros é uma história passada nas alturas, num voo que sai de Madri para o México, mas que por problemas no trem de pouso precisa ficar sobrevoando a Espanha enquanto não se descobre uma solução. A tripulação dá soníferos a todos os passageiros da classe econômica, mas os da primeira classe ficam acordados e se transformam em personagens de uma louca comédia: a cafetina de luxo que guarda segredos de homens poderosos, a mulher com poderes sobrenaturais que se apaixona por uma ereção (!!!), um pai que há muito tempo não vê a filha que fugiu de casa, o chefe dos comissários de bordo que é amante do comandante casado. Uma história novelesca e impagável que se afasta um pouco dos dramalhões envolvendo gays e aborda a temática de um modo muito mais leve e divertido. Prova do talento e versatilidade de Almodóvar.
Nota: 8,0/ 10

2. A pele que habito
 (La piel que habito, 2011)
Fúria. Loucura. Paixão. Elementos novelescos e claro, onipresentes da obra de Pedro Almodóvar. Este filme de 2011 ganhou imensa popularidade por trazer esses três elementos com mais intensidade que o normal a ponto de chocar o espectador; muitos o classificam como terror – mas a intenção aqui não é apavorar o espectador, e sim impressionar, e muito. Antônio Banderas interpreta um cirurgião plástico muito competente, um cientista inovador cujo único, mas grande defeito é o desprezo à ética. Um de seus mais promissores e polêmicos trabalhos é o desenvolvimento de uma pele artificial cuja aparência é a da pele humana, mas é mais resistente. E para cobaia, ele usa alguém que fez coisas que o atingiram fortemente naquilo que ele considerava mais precioso. O que? Assista para descobrir. Garanto que é um prazer imenso descobrir os segredos que Almodóvar tem a revelar pouco a pouco e que deixou boquiabertas plateias de todo o mundo.
Nota: 9,0/ 10

3. 
Volver (2006) 
Voltando a trabalhar com fortes personagens femininas, Almodóvar dirige a história das irmãs Raimunda (Penélope Cruz) e  Sole (Lola Dueñas), que perderam os pais num trágico incêndio. O maior destaque da história vai para Raimunda, que logo no início do filme se vê diante da morte do marido pela sua própria filha, que o matara para se defender de abuso sexual. Mãe protetora, Raimunda decide esconder o cadáver para proteger sua filha. Na mesma noite, Sole viaja para o enterro de sua tia Paula, uma idosa debilitada que quando viva jurava para as duas irmãs que era a falecida mãe delas, Irene, quem cuidava dela na velhice - e as irmãs achavam que a tia estava ficando caduca. Mas acontece o impensável: Sole encontra sua falecida mãe mais viva do que nunca no porta-malas de seu carro. Estamos diante do sobrenatural? É a indagação que Almodóvar conduz pelo filme, com sua habilidade única de revelar aos poucos os mistérios de suas obras. Além das marcas do diretor espanhol, Volver tem como principal mérito as atuações de suas protagonistas, vencedoras do prêmio de atuação feminina em Cannes (foram cinco vencedoras empatadas), e talvez a melhor atuação da carreira de Penélope Cruz.
Nota: 8,5/ 10

4. Fale com ela
 (Hable con ella, 2002)
Esse é um dos meus dez filmes favoritos; já o vi várias vezes e sempre me emociono. A história é simples: o repórter Marco (Darío Grandinetti) se envolve com a promissora toureira Lydia (Flores), que ao sofrer um grave acidente entra em estado de coma profundo. Na clínica em que Lydia é internada Marco conhece o enfermeiro Benigno (Javier Cámara), que é apaixonado por sua paciente Alicia. Os dois amigos se veem na mesma situação, buscando o amor de mulheres permanentemente inconscientes - o "fale com ela" do título é um conselho que Benigno dá ao repórter para que este tente diminuir sua dor. Almodóvar utiliza poesia e sutileza para contar essas tristes histórias que se encontram e são tão semelhantes, se afastando um pouco de seu estilo em que personagens femininas e homossexuais se destacam, dando lugar a dois protagonistas masculinos e heterossexuais, e trocando a tradicional turbulência pela delicadeza da dança (inclusive as touradas são suavizadas e comparadas ao balé) e músicas bonitas e tristes, como Cucurrucucu paloma, interpretada por Caetano Veloso.
Nota: 10

5. Tudo sobre minha mãe (Todo sobre mi madre, 1999)
Este longa de 1999 é centrado em Manuela (Cecilia Roth), enfermeira que perde seu único filho num acidente depois de assistir à peça Uma rua chamada pecado. Ela então vai à Barcelona em busca do pai do garoto para dar a notícia, mas não o encontra; quem ela reencontra é a travesti Agrado (Antonia San Juan), sua amiga de muitos anos atrás, e através de quem conhece a freira Rosa (Penélope Cruz), que descobre estar grávida e soropositiva. Manuela se vê mantendo Rosa sob seus cuidados e responsabilidade ao mesmo tempo em que se aproxima do elenco de Uma rua chamada pecado, cuja protagonista Huma (Marisa Paredes) vive Blanche DuBois dentro e fora dos palcos. Com referências ao cinema clássico, Almodóvar mais uma vez constrói perfis femininos através da ótica de um homem crescido entre mulheres, especialmente a figura materna simbolizada por Manuela. O resultado é um filme maravilhoso, vencedor do Prêmio de direção de Cannes e do Oscar de melhor filme estrangeiro.
Nota: 10


Luís F. Passos