quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Sobre 2020, o alçapão do inferno e alguns livros


D
urante o ano eu e outros tantos dissemos, em tom de brincadeira: "coitado de quem tiver que fazer a retrospectiva 2020...". Bem, se eu dizia isso, não sou eu que vou fazer uma retrospectiva aqui. Mas, porém, contudo, no entanto e todavia, senti a necessidade de manter o hábito, abandonado apenas em 2018, de falar sobre o ano que se encerra. E esse 2020... ah, esse menino maroto que foi 2020... esse peste que parece aqueles pirralhos que o pai puxa pela orelha e a mãe bota no colo pra esquentar o traseiro. 366 dias, 366 vezes em que nosso corpo celeste que temos como casa deu a volta ao redor de si mesmo enquanto corria para dar uma volta ao redor do astro rei. Bem, pega a pipoca, o lenço de papel, a água e vamos juntos rir e chorar um pouco falando sobre um ano que não vamos conseguir esquecer.
Obviamente o grande assunto de 2020 foi a pandemia. Mas vamos tentar lembrar do que teve antes: nosso presidente querendo treta com Irã e alguns dias de piadas na internet sobre a possibilidade de guerra. "O que esse homem ainda vai inventar?" Eita, gente, não faltou coisa. Enquanto se cavava a sujeira do miliciano e seus filhos, eles começaram a incentivar os apoiadores em atos antidemocráticos que pediam fechamento do Congresso, do STF e outras barbaridades. Aí, em fevereiro, o tal vírus descoberto na China começou a se espalhar pelo mundo. E a gente aqui fazendo piada, achando que isso não chegaria aqui. Quantas referências ao corona e à cerveja Corona no carnaval? Mas no fim de fevereiro, ele chegou. Chegou com força, e duas semanas depois os governadores e prefeitos iniciaram as medidas de isolamento social para tentar conter a doença que foi oficialmente classificada como pandemia pela OMS no dia 11 de março. Bolsonaro, que já tinha dito que o medo do vírus era um histeria, foi à televisão no dia 24 de março para dizer que a Covid-19 é uma gripezinha - marco inicial da sabotagem promovida pelo presidente contra as ações do Ministério da Saúde e dos Estados. A partir daí os índices de isolamento começam a cair e percebemos que vinha um inferno pela frente. E como diz um amigo meu, o inferno tem alçapão: você acha que não dá pra piorar, mas a situação piora, e muito. Ataques à democracia, avanço do ataque à natureza com Amazônia e Pantanal em chamas, atraso na liberação do auxílio emergencial, desemprego, fome, desespero. E como não lembrar daquela reunião ministerial denunciada por Moro, o rato que pulou do navio que parecia prestes a naufragar? Era reunião ministerial ou de quadrilha?
Milhões de doentes, quase duas centenas de milhares de vidas perdidas - números que sabemos ser bem maiores, tamanha a subnotificação da Covid no Brasil. Aos poucos os números começaram a ganhar rostos conhecidos. Vi vários colegas e amigos adoecerem. Vi amigos perderem familiares. Atendi e continuo atendendo casos de Covid. Acabou que aprendi - todos aprendemos - a lidar não só com a doença mas também com o clima desesperador na pandemia. Em março, a incerteza, o medo de adoecer ou de contaminar alguém da família me fizeram chorar, assim como muitos outros profissionais que chegaram a sair de casa para proteger os seus. Sentimos medo da doença, perplexidade e raiva diante do mau comportamento de quem parecia ignorar o caos, e ódio de lideranças políticas que negavam e seguem negando a gravidade de uma doença capaz de matar e de deixar graves sequelas. Diziam que as pessoas iriam sair melhores da pandemia. Como? Indo pra festa e cagando e andando pra quem tava morrendo? 
O fato é que 2020 foi bizarro. Não só pela Covid, mas por muitos outros motivos. O que dizer de um ano que trouxe o rolê mais aleatório de Ronaldinho Gaúcho (a prisão!)? O ano da naja de Brasília, da chance do vira-lata caramelo ir pra nota de 200 reais. Um ano de muitos memes, óbvio, porque o brasileiro não deixa de rir da própria desgraça. Um ano de muitas perdas, não só para Covid, mas para outras doenças também. 2020 conseguiu levar até a imortal Olivia de Havilland, de 104 anos, última atriz viva do elenco de E o vento levou. Perdemos pessoas brilhantes da música, da literatura, do cinema, do esporte. Sentiremos falta de Flávio Migliaccio, Chadwick Boseman, Sean Connery, Diego Maradona, Quino, Kirk Douglas, Aldir Blanc, Moraes Moreira, Nicette Bruno, Tom Veiga, entre tantos outros. Pessoas tão necessárias nesses tempos difíceis, afinal, a arte sempre teve e terá a nobre função de deixar a vida mais leve, de nos distrair dos problemas, de nos fazer enxergar os problemas de um modo diferente. Precisamos e precisaremos ainda mais de arte para nos apoiar, afinal, todo o sufoco pelo qual passa o Brasil deve se manter por algum tempo e piorar nos próximos meses, já que as crises econômica e sanitária não têm previsão de resolução. É, gente, pelo visto vamos continuar descendo por alçapões, chegando ainda mais fundo no inferno ou no poço. Encerro aqui desejando saúde física e mental, força, amor, paz e dias cheios de sorrisos para todos. Que venha a vacina para que possamos nos ver e nos abraçar, e que venha o impeachment de Bolsonaro para que tenhamos motivo para comemorar por dias e dias seguidos. Fiquem com a lista dos cinco livros que mais gostei dentre os treze que li no ano de 2020.



5. 2001: uma odisseia no espaço, Arthur C. Clarke
Quando Stanley Kubrick se inspirou em um conto do escritor e cientista Arthur C. Clarke, os dois gênios se uniram para escrever as bases do que se tornaria um marco na ficção científica: eles começaram a trabalhar juntos e depois se separaram; Kubrick terminou o roteiro do filme e Clarke foi terminar seu livro. 2001 inicia na pré-história, há milhões de anos, quando um misterioso monólito surge num deserto e parece ser o catalisador da evolução de primatas humanoides. Milhões de anos depois, na era espacial, um monólito semelhante é encontrado sob a superfície lunar, motivando uma missão espacial que rumava a Júpiter e posteriormente a Saturno. Os cientistas David Bowman e Frank Poole comandam a nave Discovery, junto ao super computador HAL 9000, enquanto outros três tripulantes permanecem em um tipo de hibernação em máquinas especiais, para serem acordados apenas quando chegarem ao destino. Fatos extraordinários abalam a missão, justificando a palavra odisseia do título. O que temos aqui é uma obra incrível, sem paralelo, mostrando como poucas o poder da imaginação humana, a vontade humana de conhecer o que tem para dentro e além de nós, de nosso mundo, de nossa concepção de universo. Me cativou da mesma forma que o filme.
Nota: 10

4. O amor nos tempos do cólera, Gabriel Garcia Márquez
Livro muito comentado e lido em 2020, além de seu título ser usado no trocadilho "o amor nos tempos do corona" (eu mesmo usei bastante). Esse é um dos romances mais conhecidos do mestre Gabo, escrito nos anos 80 logo depois do ano sabático que o escritor se deu após ganhar o Nobel de literatura em 1982. Baseado numa história verdadeira - de seus pais - em que um rapaz apaixonado usava a rede de telégrafos para se comunicar com a amada, cujos pais se opunham ao romance, García Márquez narra uma história de amor e devoção que atravessou décadas. O telegrafista, violinista e poeta Florentino Ariza é um pobre rapaz que se apaixona por Fermina Daza, moça de família rica (apesar dos negócios de seu pai serem obscuros), e passa a se comunicar com ela por cartas durante alguns anos, até que pede sua mão em casamento - carta que demora 4 meses a ter resposta. Depois que o pai de Fermina descobre o namoro epistolar, manda a filha para a casa de parentes em lugares distantes, e é aí que a rede telegráfica é usada para a comunicação do casal. Fermina acaba se casando com um médico aristocrata, mas nem a distância e nem o tempo são capazes de pôr fim ao amor de Florentino. A magistral escrita de Gabriel García Márquez nos proporciona um romance interessante, bonito e até mesmo pitoresco - afinal, estamos falando do mestre do realismo fantástico.
Nota: 10

3. Sobre os ossos dos mortos, Olga Tokarczuk
Certamente minha maior e melhor surpresa literária, já que eu nunca ouvira falar do livro ou da autora, esse romance polonês me foi dado de presente em meu aniversário e me conquistou logo nas primeiras páginas. Nossa protagonista, Janina Dusheiko, é uma professora de inglês aposentada que vive numa região distante e pouco habitada da Polônia, marcada por invernos rigorosos, solidão e temporadas de caça agitadas. Dusheiko, entusiasta de astrologia e poesia inglesa, abomina a caça e é conhecida na vizinhança pela defesa dos animais - inclusive, é vegana, não consumindo nada de origem animal. Quando pessoas ligadas à caça começam a aparecer mortas, em crimes brutais e difíceis de serem explicados, Dusheiko levanta a suspeita de que os animais da região podem estar envolvidos nas mortes, já que sempre havia animais silvestres nas cenas dos crimes. Ao longo do livro a autora explora, além do tema da relação humana com os animais, temas como machismo, preconceito e pessoas que vivem à margem da sociedade. Com um texto fluido e muito envolvente, a obra prende o leitor do começo ao fim.
Nota: 10

2. Hibisco roxo, Chimamanda Ngozi Adiche
Agridoce é uma boa palavra para falar sobre esse romance incrível. A deliciosa narração de Chimamanda nos traz a jovem Kambili, uma adolescente nigeriana, filha de um dos homens mais ricos e poderosos do país. Seu pai, Eugene, é dono de jornal e empresário, e está ainda mais em destaque porque a Nigéria atravessa um delicado período político com a chegada de militares ao poder - a quem ele faz oposição. Mas o principal tema do livro é o impacto da chegada do catolicismo ao país; o pai de Kambili se converteu à Igreja Católica, abandonando as tradições locais, as quais chama de pagãs, chegando ao ponto de cortar todas as relações com seu pai. Seguimos com Kambili enquanto ela conhece a vida para além dos altos muros da mansão da família e do rígido controle do seu pai, especialmente quando ela passa a manter contato com uma tia professora e seus primos que não têm a mesma vida de conforto que ela. Livro denso, rico, muito emocionante. Imperdível.
Nota: 10

1. Por quem os sinos dobram, Ernest Hemingway
Provavelmente o melhor livro de Hemingway, esse foi o primeiro livro que li em 2020 e nenhum dos que vieram depois lhe tirou a posição de melhor livro lido no ano. Ao longo de mais de 600 páginas acompanhamos o americano Robert Jordan, combatente da Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos, que recebe a missão de explodir uma ponte na região de Segóvia. A narração acompanha poucos dias na vida do rebelde, mas são dias suficientes para que ocorra uma mudança importante em seu interior - uma pessoa seca, objetiva, calculista, alcançando a humanidade. Além de Jordan, outras personagens marcantes são apresentadas, todas elas fundamentais para o processo de mudança sofrido pelo protagonista. Esse livro maravilhoso é marcado pela sempre presente sinceridade do autor, e aqui, num nível ainda mais elevado que nas outras obras. Hemingway trabalhou como jornalista cobrindo a Guerra Civil Espanhola, e deixa transparecer em seu livro a crueza e horrores da guerra, e o que ela provoca nos corações dos homens.
Nota: 10

Luís F. Passos

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