Eu tenho a mania, quase defeito, de ver filmes aleatoriamente, em termos de diretor. Enquanto muitas pessoas seguem uma cartilha que quase todo diretor tem, eu ignoro. Por exemplo, muitos dizem que Os pássaros (1963) não é um bom primeiro Hitchcock (o porquê só Deus sabe). Pois bem, foi meu primeiro. Também tenho esse costume com livros; lembro de uma professora de literatura que me aconselhou a começar a ler Guimarães Rosa com livros menores como Primeiras Estórias, e eu parti direto pra Sagarana. Já com Lars von Trier, dizem pra ver primeiro os mais leves pra depois assistir aos mais fortes. Até que comecei com um leve, o fantástico Melancholia (2011), mas dele fui direto pro marcante Anticristo.
Na trama temos um casal, representado por Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe, que perde o filho e passa a enfrentar as dificuldades do luto e da consequente loucura que Ela (as personagens não têm nome) começa a manifestar. Como é típico na filmografia de Trier, o filme é dividido em partes (Prólogo, Luto, Dor (O Caos reina), Desespero (Femicídio), OsTrês Mendigos e Epílogo). No Prólogo, que é em preto e branco e em câmera lentíssima, do jeito que só Trier consegue fazer, vemos quando o casal está num ato sexual (explícito) e na mesma hora seu filho aproveita que está só, sai da cama e acidentalmente cai de uma janela aberta. O clímax do sexo coincide com a hora da queda da criança, fazendo a relação entre desejo (vida) e morte.
A partir do capítulo Luto a mãe começa a se afundar num poço de dor e culpa sem fim. Enquanto seu marido, que é um cético psicólogo, consegue dominar sua dor e voltar a encarar a vida, ela é internada numa clínica e não vê perspectiva de recuperação. Ele então resolve tirá-la da clínica e fazer o tratamento da esposa. Depois das primeiras conversas o casal vai a uma cabana isolada numa floresta chamada Éden (primeira de muitas referências bíblicas) onde Ela havia passado o verão com o filho há algum tempo. Na chegada deles há uma passagem interessante em que um veado carrega seu filhote morto, representando o fardo da morte do filho que o casal carrega.
No decorrer dos outros capítulos há a piora da loucura da mulher com breves momentos de aparente cura, que são seguidos de crises cada vez piores. Ela passa a usar o sexo como forma de aliviar sua ansiedade, ao mesmo tempo em que fica mais insegura e a natureza parece querer atormentar o casal - Ela chega a dizer que a natureza é a igreja do diabo. Lá pelo terceiro capítulo parece que tudo fica fora de controle e o filme passa a testar os nervos do espectador. Como não quero fazer spoiller, digo apenas que perturbador chega a ser eufemismo; Trier não tem pudor algum em mostrar cenas muito chocantes.
Anticristo (Antichrist, 2009) foi exibido pela primeira vez no Festival de Cannes, onde causou imensa perplexidade na plateia. Aqui Lars von Trier reforça a ideia de que seus filmes ou são amados, ou são odiados, e com Anticristo é impossível ficar em cima do muro. O diretor mostra quão sádico é ao fazer espectadores e elenco sofrerem diante de tamanho horror - mas deixa espaço para apreciação, que tem caráter muito pessoal. Pra começar, quem é o Anticristo? Cada pessoa é que deve decidir. Trier conseguiu equilibrar sutilmente dois argumentos perfeitamente opostos: a mãe é vítima ou algoz? É tudo loucura ou há um fundo de razão nisso tudo? É o sofrimento interferindo na razão ou há mesmo fenômenos sobrenaturais? O julgamento cabe a quem estiver disposto a viver essa experiência única que é Anticristo.
Leia também: Melancholia
Luís F. Passos
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