Foi graças a Scorsese que assisti ao melhor de todos os filmes que vi em 2013. Não foi um filme dirigido por ele, mas um de seus preferidos, sobre o qual ele comenta em um vídeo de 2006. É fato conhecido que Glauber Rocha é um dos diretores preferidos de Scorsese, além de influenciar muito de sua obra, especialmente filmes como Caminhos Cruzados e Touro Indomável. O bacana desse vídeo é ver como o gênio novaiorquino entrou em contato com o Cinema Novo no fim dos anos 60, além de comentários interessantíssimos sobre a Nova Hollywood e a famigerada indústria hollywoodiana.
Na pequena cidade sertaneja de Jardim das Piranhas surge um grupo de cangaceiros liderado por Coirana (Lorival Pariz), seguido por uma linda mulher branca conhecida como Santa (Rosa Maria Penna), pelo negro Antão (Mário Gusmão) e de uma legião de pessoas pobres; o grande grupo chega à cidade entoando cantos ritualísticos e seu líder promete vingar a morte de Lampião e Corisco e fazer justiça destruindo os ricos e poderosos que fizeram fortuna às custas da exploração dos mais carentes. A promessa do cangaceiro ameaça diretamente o coronel Horácio (Joffre Soares), um velho cego que manda e desmanda na cidadela como bem quer, e é a representação da figura conservadora e aristocrática que oprime os desfavorecidos achando que na verdade está lhes fazendo o bem, oferecendo trabalho e comida.
O coronel Horácio exige do delegado Mattos (Hugo Carvana) uma solução imediata para o problema; o delegado viaja em busca de Antônio das Mortes (Maurício do Valle), jagunço famoso por matar diversos cangaceiros, inclusive Corisco. Antônio decide ir a Jardim das Piranhas para verificar se a informação de Mattos é verdadeira, o que ele confirma pouco depois de chegar à cidade. Logo é iniciado o duelo entre o dragão da maldade, representado por Antônio, e são Jorge, representado por Coirana; a cena é filmada num único plano em que cada um morde a ponta de um lenço, segurando facões numa dança mortal guiada pela música cantada pela população que assiste à luta. Coirana acaba ferido gravemente, mas Antônio sai do combate igualmente abalado. Depois de muitos anos caçando cangaceiros e beatos e seguindo com convicção suas ideias, o jagunço começa a entender que servira de braço armado aos opressores do sertão.
O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) mexe com uma questão delicada: a linha tênue que divide o cangaço em banditismo e heroísmo. Afinal, da mesma forma que os cangaceiros roubavam grandes fazendas, também roubavam pessoas pobres e comiam na mesma mesa que políticos e fazendeiros. Mas o longa foca mais no lado heroico, afinal Coirana surge prometendo destruir casas e fazendas distribuindo terra e comida para os miseráveis que o seguem, numa espécie de reforma agrária mais forçada que a promovida na União Soviética stalinista; por outro lado, o poder representado pelo coronel Horácio é a imagem do atraso e do latifúndio conquistado à bala e mantido pelo trabalho semi-escravo de quem não tem outra alternativa para sobreviver.
O lado político do filme é muito forte; é de conhecimento de todos que Glauber Rocha era esquerdista, apesar de não ser filiado a nenhum partido, e ele expressa muito bem isso em sua obra. Questões como reforma agrária, distribuição de renda e a própria presença do povo pobre são a expressão política do longa. Os desfavorecidos existem, e eles surgirão e se farão ouvir; no caso do filme, literalmente, pois em várias cenas são cantados cânticos um tanto quanto ritualísticos pelas centenas de pessoas que acompanham Coirana. E o grito dos excluídos realmente incomodam o coronel, que fica possesso. Por falar na música, a trilha sonora é um espetáculo à parte. Talvez seja a música a narradora do filme, principalmente aquela cantada por Coirana para Antônio depois de ser ferido:
O dragão da maldade é um filme que teve (e tem) impacto tão forte sobre mim que fico até sem saber o que mais posso falar sobre ele. Elogio ao elenco, à bela fotografia, direção, roteiro... mas prefiro pensar nele como um todo; o filme com forte conteúdo político mas com um lado poético mais forte ainda - e Scorsese tem razão, a poesia sobrepuja a política - e poesia admirável por se tratar de um lirismo extraído da pobreza, de pessoas famintas, algo tão sincero e visceral que parece ter emergido das entranhas da terra. Esse é um filme verdadeiramente forte. Não forte por ser chocante, obsceno, violentíssimo (a violência aqui também merece destaque pois é bastante estilizada), mas forte por pegar o espectador, sacudi-lo e abrir seus olhos - e voltando às palavras de Scorsese, é disso que precisamos hoje em dia, mais do que nunca.
O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) mexe com uma questão delicada: a linha tênue que divide o cangaço em banditismo e heroísmo. Afinal, da mesma forma que os cangaceiros roubavam grandes fazendas, também roubavam pessoas pobres e comiam na mesma mesa que políticos e fazendeiros. Mas o longa foca mais no lado heroico, afinal Coirana surge prometendo destruir casas e fazendas distribuindo terra e comida para os miseráveis que o seguem, numa espécie de reforma agrária mais forçada que a promovida na União Soviética stalinista; por outro lado, o poder representado pelo coronel Horácio é a imagem do atraso e do latifúndio conquistado à bala e mantido pelo trabalho semi-escravo de quem não tem outra alternativa para sobreviver.
O lado político do filme é muito forte; é de conhecimento de todos que Glauber Rocha era esquerdista, apesar de não ser filiado a nenhum partido, e ele expressa muito bem isso em sua obra. Questões como reforma agrária, distribuição de renda e a própria presença do povo pobre são a expressão política do longa. Os desfavorecidos existem, e eles surgirão e se farão ouvir; no caso do filme, literalmente, pois em várias cenas são cantados cânticos um tanto quanto ritualísticos pelas centenas de pessoas que acompanham Coirana. E o grito dos excluídos realmente incomodam o coronel, que fica possesso. Por falar na música, a trilha sonora é um espetáculo à parte. Talvez seja a música a narradora do filme, principalmente aquela cantada por Coirana para Antônio depois de ser ferido:
Olha aqui Antônio das Mortes
olha as provas da tortura
eu peguei um pau de arara e fui
pensando em um dia ficar rico
aí quando eu cheguei em Minas Gerais
e logo escravo me achei
me venderam pra serviço
nas mata do Mato Grosso
só os fortes se aguentavam
e os fracos se rendiam
veio a raiva e a saudade foi
desandei lá pra Bahia
chegando em Juazeiro eu vi
chegando em Juazeiro eu vi
um velho vendendo a filha
por cinco contos de réis
aí eu roubei ela e fui sertão adentro
até o confim das Alagoas
quando eu vi ele chegando eu disse:
'e vem os ajudantes da miséria!'
e desenterrei as roupas da minha avó
e dei pra ela
e pra ele eu dei o nome de Coirana
a cobra venenosa
e saímos errantes pelos caminhos
pelas peias, pelos lixos
recolhendo os infelizes
O dragão da maldade é um filme que teve (e tem) impacto tão forte sobre mim que fico até sem saber o que mais posso falar sobre ele. Elogio ao elenco, à bela fotografia, direção, roteiro... mas prefiro pensar nele como um todo; o filme com forte conteúdo político mas com um lado poético mais forte ainda - e Scorsese tem razão, a poesia sobrepuja a política - e poesia admirável por se tratar de um lirismo extraído da pobreza, de pessoas famintas, algo tão sincero e visceral que parece ter emergido das entranhas da terra. Esse é um filme verdadeiramente forte. Não forte por ser chocante, obsceno, violentíssimo (a violência aqui também merece destaque pois é bastante estilizada), mas forte por pegar o espectador, sacudi-lo e abrir seus olhos - e voltando às palavras de Scorsese, é disso que precisamos hoje em dia, mais do que nunca.
Nota: 10
Luís F. Passos
Nenhum comentário:
Postar um comentário