quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

De Olhos Bem Fechados - a despedida de Stanley Kubrick

Era 1987 e Stanley Kubrick acabara de lançar seu décimo segundo filme, Nascido para matar, mostrando a transformação de um grupo de recrutas dos fuzileiros navais desde o início do treinamento até o tempo em que eles foram ao campo de batalha. Infelizmente, a obra-prima fora um pouco ofuscada por outros filmes também ambientados na Guerra do Vietnã, como Platoon, lançado um ano antes. Kubrick dedica-se, então, a um novo projeto, que se passaria na época da 2ª Guerra e retrataria os horrores do holocausto; porém após muito tempo de preparação, veio a notícia de que Steven Spielberg estava produzindo A lista de Schindler. Kubrick desiste da ideia do holocausto e pensa em voltar à ficção científica, e nasce o embrião da ideia para AI: Inteligência Artificial. Depois de muito trabalho, o diretor percebeu que seriam necessários alguns anos de desenvolvimento tecnológico para a realização do filme, e entrega o projeto a Spielberg, a quem Kubrick queria entregar a direção, pois pretendia ficar apenas como produtor.
Foi preciso mais algum tempo para que um novo projeto fosse preparado e só em 1996 Kubrick começou a rodar, praticamente dez anos depois de Nascido para matar. Ele escalou Tom Cruise e Nicole Kidman, na época o casal número um de Hollywood para falar de um tema sobre o qual se interessava muito: a dificuldade de manter sólido um relacionamento. É de conhecimento geral que Stanley tinha um casamento muito feliz e sua esposa, Christiane, com quem vivia há quase quarenta anos, era quem ele mais consultava sobre seu trabalho como diretor. O tema, inclusive, fora discutido inúmeras vezes pelo casal, ao longo dos anos, e permanecia a curiosidade dele. Baseado no conto Traumnovelle do austríaco Arthur Schnitzler, Kubrick apresenta Bill Harford (Cruise), médico nova iorquino bem estabelecido na profissão que atende pacientes de alto poder aquisitivo, casado e pai de uma filha. Bill é fechado, incomunicável, preso à sua rotina e adorava a estabilidade de sua vida, além de ignorar e subestimar sua esposa no relacionamento. Ele era o protótipo da acomodação, até que leva um verdadeiro tapa na cara que o faz acordar: sua mulher Alice (Kidman) admite ter fantasiado com um homem que viu de relance numa viagem. Eles estavam falando sobre um homem que dera em cima de Alice numa festa de natal dois dias antes e a conversa evoluiu para fidelidade e confiança, e ela contou a fantasia do verão anterior, deixando o marido perplexo.
Abalado pelas palavras da mulher, pela morte de um paciente e pela declaração de amor da filha deste, Bill parte em busca de aventuras sexuais um tanto irresponsáveis, especialmente aquelas cujas portas são abertas por um antigo colega de faculdade que largara o curso e trabalhava como pianista. As aventuras de Bill e suas consequências guiam a segunda metade do filme e levam a um desfecho excelente que, por ser ambíguo, faz muitos espectadores se perguntarem "mas o que diabos é isso?". Mas a ambiguidade é ótima por permitir a quem assiste ter uma interpretação mais pessoal, além de ser necessária, já que esse é um filme de fantasias, onírico, e é difícil imaginar o que seria do cinema sem fantasia.
Ao ver De olhos bem fechados (Eyes wide shut, 1999) é fácil entender porque ele foi tão trabalhoso e de produção tão demorada. O filme parece um diamante cuidadosamente lapidado, e está entre os melhores trabalhos de direção de Kubrick, desde a escolha de elenco até a iluminação de ambientes e a trilha sonora. A escolha de Tom Cruise e Nicole Kidman, que eram casados, pareceu ser a garantia de perfeito entrosamento responsável por cenas memoráveis, apesar de boa parte filme focar Tom mergulhado nos sonhos conscientes de sua personagem, impressionado com a variedade de prazeres que podia encontrar numa vida extraconjugal. Claro que houve muito desgaste do elenco; afinal, se estamos falando de Kubrick, estamos falando dos inúmeros takes de cada cena, porque ele nunca cedia um milímetro sequer sobre o que acreditava e gostava de filmar até esgotar todas as possibilidades e ter a certeza de que cada cena sairia perfeita. O que complicou nesse filme em especial foi o fato de as cenas serem longas e muitas delas serem filmadas num único plano, por apenas uma câmera, ou seja, se gastava muito tempo em um take, que era repetido várias vezes, fazendo com que algumas cenas demorassem até mesmo semanas para ficarem prontas. 
Outra coisa que notável é a música. Kubrick foi um revolucionário também na escolha da trilha sonora. Em filmes como 2001: Uma odisseia no espaço essa é tão importante que parece ser mais uma personagem na trama. Em De olhos bem fechados, o diretor fez aquela que talvez seja a melhor demonstração do quanto uma música pode expressar do que se passa na cabeça de uma personagem e do clima criado por ela. A Musica Ricercata, composta por György Ligeti na Hungria comunista dos anos 50, onde esse tipo de música era proibido (segundo Ligeti, ao executar a música ele estava apunhalando o coração de Stálin), consegue acompanhar a angústia de Bill diante das consequências de seus atos e da surpresa diante do desfecho de sua história - talvez não muito surpreendente, mas, na minha opinião, perfeito. O que é surpreendente é que se durante o desenrolar do enredo o filme pareça ser pessimista e libertino, ao fim se mostra muito esperançoso sobre seu principal tema: compromissos.
Depois de um ano e meio de filmagens e mais um ano de pós-produção, finalmente o filme ficou pronto e foi apresentado aos chefões da Warner, cuja reação foi muito positiva. O fim de um trabalho tão longo e exaustivo envolvendo uma receita milionária e a reputação de maior cineasta em atividade tiveram forte impacto sobre Stanley, que tirara de seus ombros o maior peso que já tivera de suportar. Menos de uma semana após a exibição do filme para os executivos, Kubrick faleceu enquanto dormia, vítima de um ataque cardíaco, aos 70 anos de idade, sendo 46 dedicados ao cinema, deixando três curtas metragens e treze longas, que incluem alguns dos filmes mais icônicos e definitivos já feitos. A família perdeu um pai querido, os amigos perderam um fiel companheiro, e o cinema perdeu um gênio sem paralelo.

Nota: 10

Leia também:
Lolita
2001: Uma odisseia no espaço

Luís F. Passos

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