segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Contraponto - A Humanidade Despida


Depois de tanto tempo sem escrever, não poderia fazer a minha volta com um escritor não menos que sensacional, o inglês Aldous Huxley. Do contrário do que muitos já devem estar pensando, não vou falar sobre Admirável Mundo Novo, grande clássico desse autor, mas sobre Contraponto, um livro igualmente genial. Publicado em 1928, figura na lista dos 100 melhores romances do século XX, publicada pela Modern Library. 
Seu mérito já começa na própria estrutura do romance, apenas por ser um romance de ideias, no qual cada personagem representa algo. O próprio autor, através do intelectual personagem Philip Quarles, exprime sua intenção:
“O romance de ideias. O caráter de cada uma das personagens deve-se achar, tanto quanto possível, indicado nas ideias das quais ela é porta-voz. Na medida em que as teorias são a racionalização de sentimentos, de instintos, de estados de alma, isto é praticável. O defeito capital do romance de ideias é que somos obrigados a por em cena pessoas que tem ideias a exprimir, o que exclui mais ou menos a totalidade da raça humana – à parte apenas 0,01 por cento. Aqui a razão pela qual os romancistas verdadeiros, os romancistas natos não escrevem tais livros. Mas, ora! Eu nunca pretendi ser um romancista nato.”
E todos esses personagens vão estar em perfeita harmonia, em um arranjo que lembra o contraponto musical ao qual o título faz referência, à exceção de que não se trata de uma composição em polifonia.Em lugar de múltiplas melodias tocadas simultaneamente, temos sentimentos humanos. Os personagens são pouco a pouco despidos em seu íntimo e podemos saborear cada personalidade, analisar cada diálogo ou nos identificarmos com cada emoção. À medida que enredo se desenvolve, sabemos mais sobre a história de vida de cada personagem, cada sentimento é detalhadamente descrito, assim como cada motivação e idiossincrasia, Huxley os deixa nus para os analisarmos por nós mesmos. Em uma simetria perfeita, aquilo em falta em um personagem, sobra em outro, um tema de uma passagem é revisitado na seguinte e esse contraste de personalidades torna quase impossível não se identificar com algumas.  

“(...) – Eu me sinto de tal maneira feliz, desde que estou aqui com a senhora! – anunciou ela, apenas oito dias depois de sua chegada.
– É porque tu não te esforças por ser feliz, e porque não perguntas a ti mesma porque te tornastes infeliz, porque cessaste de pensar nas coisas sob o ponto de vista da felicidade e da infelicidade. É a tolice enormíssima dos jovens desta geração – continuou Mrs. Quarles –; eles não pensam nunca na vida senão relacionando tudo com a felicidade... 'Que farei para me divertir?' Eis a pergunta que eles se fazem a si mesmos, ou então se queixam: 'Por que minha vida não é divertida?' Mas nós estamos num mundo em que 'os bons momentos', na acepção vulgar desta palavra, ou talvez em todas as suas acepções, não podem durar continuamente nem pertencer a toda gente. E, mesmo que a mocidade tivesse esses 'bons momentos', ela havia de ficar inevitavelmente decepcionada porque a sua imaginação é sempre mais bela do que a realidade. E, depois que gozamos um pouco esses momentos, eles se tornam aborrecidos. Cada um se esforça para obter a felicidade e o resultado é que ninguém é feliz.”
Bem, e tudo isso está intimamente relacionado ao contexto histórico pós Primeira Guerra Mundial. O fim da Belle Époque, a ascensão do comunismo e da luta de classes, o avanço da indústria e da mecanização, presidentes governando, as mulheres ganhando espaço no meio social, tudo fazendo parte desse romance, sob pontos de vistas únicos, no que pode ser considerado um ensaio sobre o mundo moderno.

“Se vocês acreditam nos negócios, como no serviço e na santidade do trabalho, vocês se transformarão simplesmente em idiotas mecanizados durante vinte e quatro horas, das vinte e quatro que tem um dia. Reconheçam que é um trabalho infecto, tapem o nariz, dediquem-se a ele durante oito horas e depois concentrem-se em si mesmos para ser, nas horas de folga, entes humanos verdadeiros. Seres humanos verdadeiros e completos. Não leitores de jornais, nem amadores de jazz, nem maníacos da radiofonia. Os industriais que fornecem às massas divertimentos padronizados e fabricados em serie fazem o possível para torná-los, nas horas de lazer, os mesmo imbecis mecânicos que vocês são durante as horas de trabalho. Mas não permitam isso. É preciso fazer o esforço necessário para ser humano.”
E os personagens são tão diversos quanto poderiam: o cínico Burlap, o revolucionário e insignificante Ildidge, o demasiadamente humanoRampion, a atormentada Marjorie dentre vários outros. Sendo meus preferidos a inteligente e hedonista Lucy, em diálogo a seguir com o angustiado Walter Bidlake:
“- Romântico, romântico! – escarneou ela. – Tens uma maneira tão absurdamente antiquada de pensar nas coisas. Matar e tripudiar sobre cadáveres e amar e o mais que segue. É ridículo. Por que não andas logo de fraque e plastrão?… Procura ser um pouco mais moderno.
- Prefiro ser humano.
- Viver modernamente é viver rapidamente – continuou ela. – Não podes carregar um vagão cheio de idéias e romantismo nestes tempos. Quando viajamos de avião, devemos deixar para trás as bagagens pesadas. A velha alma de antanho sentava muito bem quando se vivia vagarosamente. Mas é pesada demais para os nossos dias. Não há lugar para ela no avião…
- Nem mesmo para um coração? – perguntou Walter. – Não me preocupa muito a alma. – Já uma vez se preocupara com ela. Mas agora que a sua vida não consistia em ler filósofos, ele estava um pouco menos interessado nela. – mas o coração – ajuntou -, o coração…

Lucy sacudiu a cabeça.
- Talvez seja uma pena – concedeu ela. – mas tudo tem o seu preço. Se gostamos da velocidade, se queremos ganhar terreno, não podemos levar bagagem. Trata-se de saber o que queremos, e de estarmos prontos a pagar o preço devido. Eu sei exatamente o que quero; assim, sacrifico a bagagem. Se te agrada viajar num caminhão de mudanças, viaja. Mas não esperes que eu te acompanhe, ó meu suavíssimo Walter. Não esperes que eu leve o teu piano de cauda no meu monoplano de dois lugares.”
E o pessimista sem objetivos ou credos,Spandrell. Eles vão levantar os debates e as ideias mais interessantes.  

“- É jovem ainda. - Foi assim que Spandrell comentou a noite. Jovem e um pouco insípida. As noites são como seres humanos: só começam a interessar depois que ficam adultas. Lá pela meia-noite elas atingem a puberdade. Um pouco depois da 1 hora chegam à maioridade. A sua plenitude esta entre duas e duas e meia. Uma hora mais tarde elas vão ficando cada vez mais desesperadas, como essas mulheres devoradoras de homens e esses homens maduros em declínio que andam por aí a saltitar num pé só mais violentamente do que nunca, na esperança de se convencerem a si mesmos de que não são velhos. Depois das quatro horas, as noites entram em plena decomposição. E a sua morte é horrível. Verdadeiramente horrível, ao nascer do sol, quando as garrafas estão vazias, as pessoas têm um aspecto de cadáveres e o desejo se desfaz em desgosto. Tenho um fraco pelas cenas de leito de morte, confesso – ajuntou Spandrell.”
Antes de finalizar essa resenha, aproveito, pois, para justificar a nota que se segue. Por ser tão denso, é também por vezes cansativo. Além disso, nem todos personagens são tão interessantes assim. O próprio autor, ainda na voz de Quarles exprimiu isso: 
“O grande defeito do romance de ideias é que ele é uma coisa artificial, arranjada. Necessariamente; porque as pessoas capazes de desenvolver teses formuladas de maneira adequada não são bem reais; são levemente monstruosas. Torna-se um tanto cansativo, com o andar do tempo, viver com monstros.”
 Mas nada que tire seu mérito. Contraponto é daqueles livros que te deixam inquieto, que precisam ser relidos, uma vez que toda sua significação depende de como interage com o leitor. É um livro de múltiplas camadas para se ler entre pausas e respiradas. Se de acordo com Huxley a única generalização que podemos arriscar é que as maiores obras de arte tem tido grandes assuntos, essa é uma obra de arte das mais elevadas.
Nota: 9/ 10 

Marcelle Freire

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