Depois
de tanto tempo sem escrever, não poderia fazer a minha volta com um escritor
não menos que sensacional, o inglês Aldous Huxley. Do contrário do que muitos
já devem estar pensando, não vou falar sobre Admirável Mundo Novo, grande
clássico desse autor, mas sobre Contraponto, um livro igualmente genial.
Publicado em 1928, figura na lista dos 100 melhores romances do século XX,
publicada pela Modern Library.
Seu
mérito já começa na própria estrutura do romance, apenas por ser um romance de ideias,
no qual cada personagem representa algo. O próprio autor, através do
intelectual personagem Philip Quarles, exprime sua intenção:
“O
romance de ideias. O caráter de cada uma das personagens deve-se achar, tanto
quanto possível, indicado nas ideias das quais ela é porta-voz. Na medida em
que as teorias são a racionalização de sentimentos, de instintos, de estados de
alma, isto é praticável. O defeito capital do romance de ideias é que somos
obrigados a por em cena pessoas que tem ideias a exprimir, o que exclui mais ou
menos a totalidade da raça humana – à parte apenas 0,01 por cento. Aqui a razão
pela qual os romancistas verdadeiros, os romancistas natos não escrevem tais
livros. Mas, ora! Eu nunca pretendi ser um romancista nato.”
E todos esses personagens vão estar em
perfeita harmonia, em um arranjo que lembra o contraponto musical ao qual o
título faz referência, à exceção de que não se trata de uma composição em
polifonia.Em lugar de múltiplas melodias tocadas simultaneamente, temos
sentimentos humanos. Os personagens são pouco a pouco despidos em seu íntimo e
podemos saborear cada personalidade, analisar cada diálogo ou nos
identificarmos com cada emoção. À medida que enredo se desenvolve, sabemos mais
sobre a história de vida de cada personagem, cada sentimento é detalhadamente
descrito, assim como cada motivação e idiossincrasia, Huxley os deixa nus para os
analisarmos por nós mesmos. Em uma simetria perfeita, aquilo em falta em um
personagem, sobra em outro, um tema de uma passagem é revisitado na seguinte e
esse contraste de personalidades torna quase impossível não se identificar com
algumas.
“(...) – Eu me sinto de tal maneira
feliz, desde que estou aqui com a senhora! – anunciou ela, apenas oito dias
depois de sua chegada.
–
É porque tu não te esforças por ser feliz, e porque não perguntas a ti mesma
porque te tornastes infeliz, porque cessaste de pensar nas coisas sob o ponto
de vista da felicidade e da infelicidade. É a tolice enormíssima dos jovens
desta geração – continuou Mrs. Quarles –; eles não pensam nunca na vida senão
relacionando tudo com a felicidade... 'Que farei para me divertir?' Eis a
pergunta que eles se fazem a si mesmos, ou então se queixam: 'Por que minha
vida não é divertida?' Mas nós estamos num mundo em que 'os bons momentos', na
acepção vulgar desta palavra, ou talvez em todas as suas acepções, não podem
durar continuamente nem pertencer a toda gente. E, mesmo que a mocidade tivesse
esses 'bons momentos', ela havia de ficar inevitavelmente decepcionada porque a
sua imaginação é sempre mais bela do que a realidade. E, depois que gozamos um
pouco esses momentos, eles se tornam aborrecidos. Cada um se esforça para obter
a felicidade e o resultado é que ninguém é feliz.”
Bem,
e tudo isso está intimamente relacionado ao contexto histórico pós Primeira
Guerra Mundial. O fim da Belle Époque,
a ascensão do comunismo e da luta de classes, o avanço da indústria e da
mecanização, presidentes governando, as mulheres ganhando espaço no meio
social, tudo fazendo parte desse romance, sob pontos de vistas únicos, no que
pode ser considerado um ensaio sobre o mundo moderno.
“Se
vocês acreditam nos negócios, como no serviço e na santidade do trabalho, vocês
se transformarão simplesmente em idiotas mecanizados durante vinte e quatro
horas, das vinte e quatro que tem um dia. Reconheçam que é um trabalho infecto,
tapem o nariz, dediquem-se a ele durante oito horas e depois concentrem-se em
si mesmos para ser, nas horas de folga, entes humanos verdadeiros. Seres
humanos verdadeiros e completos. Não leitores de jornais, nem amadores de jazz,
nem maníacos da radiofonia. Os industriais que fornecem às massas divertimentos
padronizados e fabricados em serie fazem o possível para torná-los, nas horas
de lazer, os mesmo imbecis mecânicos que vocês são durante as horas de
trabalho. Mas não permitam isso. É preciso fazer o esforço necessário para ser
humano.”
E os personagens são tão diversos quanto
poderiam: o cínico Burlap, o revolucionário e insignificante Ildidge, o demasiadamente
humanoRampion, a atormentada Marjorie dentre vários outros. Sendo meus
preferidos a inteligente e hedonista Lucy, em diálogo a seguir com o angustiado
Walter Bidlake:
“- Romântico, romântico! – escarneou
ela. – Tens uma maneira tão absurdamente antiquada de pensar nas coisas. Matar
e tripudiar sobre cadáveres e amar e o mais que segue. É ridículo. Por que não
andas logo de fraque e plastrão?… Procura ser um pouco mais moderno.
- Prefiro ser humano.
- Viver modernamente é viver rapidamente
– continuou ela. – Não podes carregar um vagão cheio de idéias e romantismo
nestes tempos. Quando viajamos de avião, devemos deixar para trás as bagagens
pesadas. A velha alma de antanho sentava muito bem quando se vivia vagarosamente.
Mas é pesada demais para os nossos dias. Não há lugar para ela no avião…
- Nem mesmo para um coração? – perguntou
Walter. – Não me preocupa muito a alma. – Já uma vez se preocupara com ela. Mas
agora que a sua vida não consistia em ler filósofos, ele estava um pouco menos
interessado nela. – mas o coração – ajuntou -, o coração…
Lucy sacudiu a cabeça.
-
Talvez seja uma pena – concedeu ela. – mas tudo tem o seu preço. Se gostamos da
velocidade, se queremos ganhar terreno, não podemos levar bagagem. Trata-se de
saber o que queremos, e de estarmos prontos a pagar o preço devido. Eu sei
exatamente o que quero; assim, sacrifico a bagagem. Se te agrada viajar num
caminhão de mudanças, viaja. Mas não esperes que eu te acompanhe, ó meu
suavíssimo Walter. Não esperes que eu leve o teu piano de cauda no meu
monoplano de dois lugares.”
E
o pessimista sem objetivos ou credos,Spandrell. Eles vão levantar os debates e
as ideias mais interessantes.
“-
É jovem ainda. - Foi assim que Spandrell comentou a noite. Jovem e um pouco
insípida. As noites são como seres humanos: só começam a interessar depois que
ficam adultas. Lá pela meia-noite elas atingem a puberdade. Um pouco depois da
1 hora chegam à maioridade. A sua plenitude esta entre duas e duas e meia. Uma
hora mais tarde elas vão ficando cada vez mais desesperadas, como essas
mulheres devoradoras de homens e esses homens maduros em declínio que andam por
aí a saltitar num pé só mais violentamente do que nunca, na esperança de se
convencerem a si mesmos de que não são velhos. Depois das quatro horas, as
noites entram em plena decomposição. E a sua morte é horrível. Verdadeiramente
horrível, ao nascer do sol, quando as garrafas estão vazias, as pessoas têm um
aspecto de cadáveres e o desejo se desfaz em desgosto. Tenho um fraco pelas
cenas de leito de morte, confesso – ajuntou Spandrell.”
Antes
de finalizar essa resenha, aproveito, pois, para justificar a nota que se
segue. Por ser tão denso, é também por vezes cansativo. Além disso, nem todos
personagens são tão interessantes assim. O próprio autor, ainda na voz de
Quarles exprimiu isso: “O grande defeito do romance de ideias é que ele é uma coisa artificial, arranjada. Necessariamente; porque as pessoas capazes de desenvolver teses formuladas de maneira adequada não são bem reais; são levemente monstruosas. Torna-se um tanto cansativo, com o andar do tempo, viver com monstros.”Mas nada que tire seu mérito. Contraponto é daqueles livros que te deixam inquieto, que precisam ser relidos, uma vez que toda sua significação depende de como interage com o leitor. É um livro de múltiplas camadas para se ler entre pausas e respiradas. Se de acordo com Huxley a única generalização que podemos arriscar é que as maiores obras de arte tem tido grandes assuntos, essa é uma obra de arte das mais elevadas.
Nota: 9/ 10
Marcelle Freire
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