Com o anseio pela crítica social, Afonso Henriques de Lima Barreto lançou no ano de 1909 o seu primeiro romance Recordações do escrivão Isaías Caminha (que já havia sido publicado dois anos antes na revista de sua autoria, a Floreal). O escritor nascido na cidade do Rio de Janeiro transportou sua visão crítica ao seu livro dando-o um cunho de reflexão social, fato que abalou os meios literários da época.
O criticismo ferrenho de Lima Barreto era constante em suas obras, e assim foi em Recordações do escrivão Isaías Caminha aonde trata de uma história que se confunde bastante com a própria enquanto mulato discriminado e jornalista. É decorrido em quatorze capítulos o destino do protagonista que dá nome a obra, a partir de sua infância em um ambiente familiar incomum – nascido da quebra do voto de castidade de um missionário branco com uma negra humilde – até sua conquista do cargo de escrivão após muitas dificuldades. Não se limitou a tecer comentários apenas sobre a penosa vida de um mestiço, mas foi além e discorreu sobre a urbanização desordenada do Rio de Janeiro, a atração do serviço público, o jogo de influências políticas e midiáticas e a tendência patética do povo brasileiro em reproduzir em suas terras o estilo das cidades europeias.
Assim como nas recordações de Isaías Caminha, seu autor não encontrou o estrelato que esperava no decorrer de sua trajetória. O personagem dividia-se entre o sonho de intitular-se “doutor” e a descrença de que conseguiria por ser mulato. Perante diversas dificuldades e discriminações, ora veladas, ora não, Caminha termina a sua jornada alçando uma boa carreira em órgão público com seu trabalho e conduta exemplares, entretanto não se realiza como “doutor”. Criação e criador se esbarram nesse ponto: apesar de edificarem certa importância social, a vaidade intelectual fazia-os ansiar por maior destaque.
Lima Barreto morreu em decadência após longo abuso de álcool aos 41 anos, o que pareciam bem mais devido ao envelhecimento precoce e o enfraquecimento do corpo. Enquanto vivo não parou de escrever, contribuindo sempre com os periódicos ou trancando-se em sua casa à rua Major Mascarenhas, onde morou por mais de vinte anos até a data de sua morte, para produzir novas narrativas. Dentre suas obras mais famosas encontram-se títulos como Triste fim de Policarpo Quaresma (1911), Numa e a Ninfa (1915), Clara dos Anjos (1922), Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919) e, é claro, Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909).
É uma pena que o ficcionista não tenha encontrado amparo ainda vivo entre os escritores de seu tempo. A negligência da gramática em seus textos, a linguagem coloquial e alguns temas ultrajantes levaram o seu nome a ser repudiado por poetas, escritores e críticos da época. Até mesmo o seu primeiro romance foi recebido com silêncio pela roda literária do Rio de Janeiro, o que ia de encontro com sua intenção de gerar polêmica. Diante dessa marginalização passou a não se considerar um literato, apesar de viver apenas da sua literatura.
Ao falar com o povo sobre os problemas do povo, Lima Barreto incomodou aqueles que anunciavam como a sociedade deveria ser. Se nos tempos da Primeira República apontar os preconceitos e as discriminações, a manipulação da mídia e o sedentarismo público ou político era rebeldia, hoje em dia não se tornou mais fácil ser ouvido.
A leitura de Recordações do escrivão Isaías Caminha então é um lúcido desabafo, sua trama poderia se confundir com a de milhares de brasileiros e permanece atual. A escolha da sátira como forma de escrever deixa a estória mais leve, escarnecendo até o limite do ridículo as caricaturas e os seus vícios em uma comunidade de aparências.
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