segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Leite Derramado


"Não adianta chorar sobre o leite derramado", fato. Mas a intenção de Eulálio Assumpção, nos seus mais de cem anos de idade e na sua cama de hospital público não é chorar, e sim contar sua história, num monólogo dirigido à filha, à equipe médica e a quem mais quiser ouvir. A história de Eulálio é a historia da decadência social e econômica de sua família durante dois séculos, que começa com um barão do Império e termina com o seu tataraneto, playboy carioca envolvido com o tráfico de drogas.
Eulálio era filho de um dos mais influentes senadores da República Velha, e sua ancestralidade inclui figuras como um conselheiro de D. Maria I e um senador do Império. A decadência da família começa quando seu pai é assassinado; a falta de aptidão de Eulálio para a política o impede de manter a fortuna da família aos custos de uma carreira publica. Com pouco mais de vinte anos, ele se casa com Matilde, de apenas dezessete anos, com quem tem uma filha, Maria Eulália. A coisa só vai de mal a pior: Maria Eulália se casa com um aproveitador que rouba boa parte o patrimônio da família, e depois a abandona. Seu filho é criado pelo avô Eulálio, "cujo nome ainda abria muitas portas", mas quando o menino, que também se chamava Eulálio, chega à adolescência, se envolve com ideias comunistas - isso em plena ditadura - e é morto pelos militares, mas deixa uma moça grávida. Nessa altura as propriedades dos Assumpção - um chalé em Copacabana, uma mansão no Botafogo e uma fazenda em Petrópolis - haviam diminuído e se resumiam a um apartamento de classe média na Tijuca.
Essa nova geração da família (bisneto do narrador) não é descrita, mas seu filho, sim. O mais novo Eulálio é criado pela bisavó (Maria Eulália) com todo carinho e nenhuma disciplina. Resultado: se torna um playboy envolvido com o tráfico de drogas. Inicialmente ganha algum dinheiro, mas acaba perdendo o apartamento da família, forçando o velho Eulálio e sua filha a se mudar para uma casinha na Baixada Fluminense, atrás de uma igreja evangélica. É assim que ele chega aos cem anos, vítima de Alzheimer, tratado como um caduco e aguardando a morte.
Esse foi um dos melhores livros que li esse ano. Ao longo de duzentas páginas, Chico Buarque envolve o leitor nas lembranças, geralmente confusas, de um membro de uma tradicional família do Rio de Janeiro, que viu o dinheiro e o prestígio de sua família se esvair aos poucos. Como Eulálio sofre de Alzheimer, a narração assume a fala desarticulada dele; a ordem lógica e cronológica é embaralhada. Eulálio repete muita coisa, e várias vezes acaba se contradizendo. Por exemplo, não fica claro se Matilde o trocou por outro homem ou se foi internada num hospício. Os devaneios do narrador revelam seu ciúme, sua infelicidade e sua perplexidade diante de todos os fatos ocorridos: ele nem entendia e nem aceitava a sua decadência.
Outra coisa interessante é em relação aos locais. O chalé de Copacabana se torna um prédio de edifícios, onde Eulálio vai morar, se mudando depois para a Tijuca; a mansão de Botafogo se torna sede de uma embaixada, e a fazenda "na raiz da serra" se torna uma favela, para onde o narrador é mandado depois de perder seu apartamento.
Leite derramado foi publicado em 2009. Em 2010 recebeu o Prêmio Portugal Telecom e o Prêmio Jabuti na categoria Livro do ano.

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