quarta-feira, 15 de maio de 2013

Fahrenheit 451 – os poros no rosto da vida

O livro escolhido para hoje foi escrito pelo grande escritor americano Ray Bradbury, em 1953. Faz parte das chamadas distopias, ou utopias negativas, do século XX, quando surgem tentativas de se prever o futuro na humanidade a partir de um presente cheio de desesperança. Junto com Admirável Mundo Novo (1934), de Huxley e 1984 (1949), de Orwell, Fahrenheit 451 faz parte da grande tríade do movimento, não sem razão.
O enredo se passa em um futuro não bem definido, e pode ser chamado de metalinguístico já que vai explorar toda a importância dos livros para uma sociedade que já não se importa mais com eles. Aliás, por que ler e ficar pensativo ou angustiado com questões existenciais se você pode pegar o carro e dirigir a mais de 200km/h ou outra velocidade maior na qual não se consiga pensar em nada? Por que se entreter com palavras se festas e drogas são liberadas à vontade? Por que interiorizar um pensamento se todos têm a “família”, como eram chamados os personagens da programação interativa a qual passava em telões enormes, espalhados pela casa, fornecendo o tanto exato de entretenimento para o estreito intelecto das massas?
 “Cuida-se então para que todos sejam felizes, oferecendo prazer e excitação em profusão. (...) Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum”.
Já deve ter notado a semelhança entre a sociedade em Fahrenheit 451 e a do livro de Huxley, ambas com grande inversão dos preceitos morais. Hedonista ao extremo, pode-se dizer que com o excessivo crescimento da população, tentar manter todos felizes foi a forma encontrada pelo governo para manter todos sob controle. E isso era conseguido incentivando desejos primitivos como festas, comemorações comunitárias, quem quisesse podia sair por aí atropelando pedestres desatentos, era comum, mas podia-se ser preso por gostar de passeios noturnos a pé. Nem a escola tem mais o mesmo significado que conhecemos:
 “A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é o que conta, o prazer está por toda a parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?”
E nesse contexto encontra-se Guy Montag, cujo sobrenome não coincidentemente remete a uma fábrica de papel. Bombeiro, mas não do tipo que conhecemos hoje. Naquele tempo, as casas já eram todas à prova de fogo e a profissão possuía agora outra função: “reduza os livros às cinzas e, depois, queime as cinzas”. Era esse seu slogan daqueles que um dia apagavam o fogo ao invés de começa-lo. Ao longo do livro vamos acompanhar toda a angústia de um homem que em um primeiro momento adorava seu emprego, sua esposa Mildred, sua vida, mas que a partir de certo ponto, vai enxergar o quão vazia e desprovida de sentido ela é.
Um dos marcos para essa epifania é quando Guy conhece Clarisse McClellan, sua vizinha, de 17 anos. Ela, por sua vez, era tida como estranha, porque gostava de caminhar a noite e ver o sol nascer, porque notava o orvalho cobrindo a grama logo pela manhã, porque olhava para o céu, porque não queria saber como uma coisa era feita, mas por quê. É ela quem ingenuamente perguntará ao nosso protagonista se ele era feliz. Não sabia ela o quanto essa pergunta ia ecoar em sua mente. A partir daí tudo na vida do nosso herói vai pouco a pouco desmoronar, levando-o a uma crise pessoal a qual se estenderá a todos aspectos de sua vida, como seu casamento. Não muito depois ele percebe o quanto sua mulher é fria, vazia, condicionada e que nunca a amou.
“Usava a felicidade como uma máscara e a garota fugira com ela pelo gramado e não havia como ir bater à sua porta para pedi-la de volta.”
Sua compunção abrangeria inclusive sua profissão, a partir, no entanto, de outro episódio. Certa vez após uma denúncia anônima os bombeiros vão a uma casa onde havia vários livros. E lá se passará uma cena belíssima na qual uma mulher se recusará a sair da casa, optando por ser queimada junto às obras não sem antes de fazer uma belíssima citação de Latimer, também queimado, por heresia, em 1555. É a partir daí que Montag passará a questionar-se qual o conteúdo de um livro para levar uma pessoa a optar por suicidar-se a deixa-los. 
“Temos tudo de que precisamos para ser felizes, mas não somos felizes. Alguma coisa está faltando. Olhei em volta. A única coisa que tive certeza que havia desaparecido eram os livros que queimei durante dez ou doze anos. Por isso achei que os livros poderiam ajudar.”
Nessa busca pelo sentido da vida, nosso protagonista terá ajuda de Faber, o mesmo nome do fabricante de lápis, um professor de inglês aposentado, presente inclusive na lista de pessoas a serem investigadas por atitude suspeita. Ele que há tempo desistiu de lutar contra o sistema, optou por resignar-se, tendo até já queimado todos os seus livros, terá seu ímpeto revolucionário restaurado pela energia de Montag e irá orientá-lo na sua jornada pelo crescimento pessoal enquanto buscam uma saída para reverter esse contexto sócio-político.
“A maioria de nós não pode sair correndo por aí, falar com todo mundo, conhecer todas as cidades do mundo. Não temos tempo, dinheiro ou tantos amigos assim. As coisas que você está procurando, Montag, estão no mundo, mas a única possibilidade que o sujeito comum terá de ver noventa e nove por cento delas está num livro. Não peça garantias. E não espere ser salvo por uma coisa, uma pessoa, máquina ou biblioteca. Trate de agarrar sua própria tábua e, se você se afogar, pelo menos morra sabendo que estava no rumo da costa.”
No fim da história, temos é um futuro ainda incerto, mas um protagonista muito diferente daquele do começo, aliás, é muito bonito ver a humanidade, em seu sentido ascético, retornando a uma pessoa que antes não era muito diferente de um robô. Nas palavras finais do próprio Montag:
“Caminharemos agora pelas estradas e teremos tempo para pôr as coisas dentro de nós. E algum dia, depois que elas decantarem em nós por muito tempo, sairão por nossas mãos e bocas. E muitas delas estarão erradas, mas o suficiente estará certo. Começaremos a caminhar hoje e veremos o mundo e o modo com ele caminha e fala, o modo como ele realmente é. Agora quero ver tudo. E embora nada do que entrar fará parte de mim quando entrar, após algum tempo tudo se juntará lá dentro e se fundirá a mim. Olhe para o mundo lá fora, Deus, meu Deus, olhe lá, fora de mim, para lá do meu rosto, e a única maneira de realmente tocá-lo é coloca-lo onde ele finalmente seja eu, onde ele fique no sague, onde seja bombeado mil, dez mil vezes por dia. Eu o guardarei para que nunca se esgote. Eu me agarrarei firme ao mundo algum dia. Já pus um dedo nele; é um começo.”
Infelizmente, em Fahrenheit 451, diferente de 1984, onde tudo era imposto pelo governo, a própria sociedade teve um papel importante para a nova estrutura organizada. Basta entender como os livros passaram a ser queimados para perceber. Em um primeiro momento, os livros foram perdendo espaço para resumos, colunas em revistas, depois programas de rádio ou outra coisa progressivamente menor, para se adaptar a um mundo onde ninguém mais tinha tempo. Depois, os livros perderam em qualidade também, com uma população muito grande, tem-se também uma população muito heterogênea. Para agrada a todos, as revistas se tornaram “uma mistura insossa” e os livros, “água de louça suja”, não demorou muito para pararem de ser vendidos. Foi-se criando uma sociedade anti-intelectual. As pessoas não tinham mais interesse em ler, mas também não queriam se sentir inferiores àquelas poucas que ainda o tinham. E assim, com cada minoria destruindo um livro contrário a seu pensamento, foi-se extinguindo todos eles, pouco a pouco. Os bombeiros só vieram a acelerar um processo iniciado espontaneamente.
“Entendem por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida.”
O incrível de Fahrenheit 451 é ele levar às últimas consequências processos já observados em nossa sociedade. Vivemos na era da imagem, das frases de facebook, dos relacionamentos distantes, da escassez de tempo, apesar de o livro ter sido pensado na época dos governos totalitários, da censura, do controle ideológico. Com essa distopia não tão distante assim, não dá para não teme-la; não dá, todavia, para não se apaixonar também. Se nas palavras do próprio Bradbury “os bons escritores quase sempre tocam a vida”, pode-se dizer que ele não só a toca como a expõe em toda sua crueza, tudo isso embalado por uma linguagem tão poética em um texto tão carregado de sentido que por alguns dias não se quererá ler mais nada.

Nota: 10

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Marcelle Freire

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