quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Sobre 2020, o alçapão do inferno e alguns livros


D
urante o ano eu e outros tantos dissemos, em tom de brincadeira: "coitado de quem tiver que fazer a retrospectiva 2020...". Bem, se eu dizia isso, não sou eu que vou fazer uma retrospectiva aqui. Mas, porém, contudo, no entanto e todavia, senti a necessidade de manter o hábito, abandonado apenas em 2018, de falar sobre o ano que se encerra. E esse 2020... ah, esse menino maroto que foi 2020... esse peste que parece aqueles pirralhos que o pai puxa pela orelha e a mãe bota no colo pra esquentar o traseiro. 366 dias, 366 vezes em que nosso corpo celeste que temos como casa deu a volta ao redor de si mesmo enquanto corria para dar uma volta ao redor do astro rei. Bem, pega a pipoca, o lenço de papel, a água e vamos juntos rir e chorar um pouco falando sobre um ano que não vamos conseguir esquecer.
Obviamente o grande assunto de 2020 foi a pandemia. Mas vamos tentar lembrar do que teve antes: nosso presidente querendo treta com Irã e alguns dias de piadas na internet sobre a possibilidade de guerra. "O que esse homem ainda vai inventar?" Eita, gente, não faltou coisa. Enquanto se cavava a sujeira do miliciano e seus filhos, eles começaram a incentivar os apoiadores em atos antidemocráticos que pediam fechamento do Congresso, do STF e outras barbaridades. Aí, em fevereiro, o tal vírus descoberto na China começou a se espalhar pelo mundo. E a gente aqui fazendo piada, achando que isso não chegaria aqui. Quantas referências ao corona e à cerveja Corona no carnaval? Mas no fim de fevereiro, ele chegou. Chegou com força, e duas semanas depois os governadores e prefeitos iniciaram as medidas de isolamento social para tentar conter a doença que foi oficialmente classificada como pandemia pela OMS no dia 11 de março. Bolsonaro, que já tinha dito que o medo do vírus era um histeria, foi à televisão no dia 24 de março para dizer que a Covid-19 é uma gripezinha - marco inicial da sabotagem promovida pelo presidente contra as ações do Ministério da Saúde e dos Estados. A partir daí os índices de isolamento começam a cair e percebemos que vinha um inferno pela frente. E como diz um amigo meu, o inferno tem alçapão: você acha que não dá pra piorar, mas a situação piora, e muito. Ataques à democracia, avanço do ataque à natureza com Amazônia e Pantanal em chamas, atraso na liberação do auxílio emergencial, desemprego, fome, desespero. E como não lembrar daquela reunião ministerial denunciada por Moro, o rato que pulou do navio que parecia prestes a naufragar? Era reunião ministerial ou de quadrilha?
Milhões de doentes, quase duas centenas de milhares de vidas perdidas - números que sabemos ser bem maiores, tamanha a subnotificação da Covid no Brasil. Aos poucos os números começaram a ganhar rostos conhecidos. Vi vários colegas e amigos adoecerem. Vi amigos perderem familiares. Atendi e continuo atendendo casos de Covid. Acabou que aprendi - todos aprendemos - a lidar não só com a doença mas também com o clima desesperador na pandemia. Em março, a incerteza, o medo de adoecer ou de contaminar alguém da família me fizeram chorar, assim como muitos outros profissionais que chegaram a sair de casa para proteger os seus. Sentimos medo da doença, perplexidade e raiva diante do mau comportamento de quem parecia ignorar o caos, e ódio de lideranças políticas que negavam e seguem negando a gravidade de uma doença capaz de matar e de deixar graves sequelas. Diziam que as pessoas iriam sair melhores da pandemia. Como? Indo pra festa e cagando e andando pra quem tava morrendo? 
O fato é que 2020 foi bizarro. Não só pela Covid, mas por muitos outros motivos. O que dizer de um ano que trouxe o rolê mais aleatório de Ronaldinho Gaúcho (a prisão!)? O ano da naja de Brasília, da chance do vira-lata caramelo ir pra nota de 200 reais. Um ano de muitos memes, óbvio, porque o brasileiro não deixa de rir da própria desgraça. Um ano de muitas perdas, não só para Covid, mas para outras doenças também. 2020 conseguiu levar até a imortal Olivia de Havilland, de 104 anos, última atriz viva do elenco de E o vento levou. Perdemos pessoas brilhantes da música, da literatura, do cinema, do esporte. Sentiremos falta de Flávio Migliaccio, Chadwick Boseman, Sean Connery, Diego Maradona, Quino, Kirk Douglas, Aldir Blanc, Moraes Moreira, Nicette Bruno, Tom Veiga, entre tantos outros. Pessoas tão necessárias nesses tempos difíceis, afinal, a arte sempre teve e terá a nobre função de deixar a vida mais leve, de nos distrair dos problemas, de nos fazer enxergar os problemas de um modo diferente. Precisamos e precisaremos ainda mais de arte para nos apoiar, afinal, todo o sufoco pelo qual passa o Brasil deve se manter por algum tempo e piorar nos próximos meses, já que as crises econômica e sanitária não têm previsão de resolução. É, gente, pelo visto vamos continuar descendo por alçapões, chegando ainda mais fundo no inferno ou no poço. Encerro aqui desejando saúde física e mental, força, amor, paz e dias cheios de sorrisos para todos. Que venha a vacina para que possamos nos ver e nos abraçar, e que venha o impeachment de Bolsonaro para que tenhamos motivo para comemorar por dias e dias seguidos. Fiquem com a lista dos cinco livros que mais gostei dentre os treze que li no ano de 2020.



5. 2001: uma odisseia no espaço, Arthur C. Clarke
Quando Stanley Kubrick se inspirou em um conto do escritor e cientista Arthur C. Clarke, os dois gênios se uniram para escrever as bases do que se tornaria um marco na ficção científica: eles começaram a trabalhar juntos e depois se separaram; Kubrick terminou o roteiro do filme e Clarke foi terminar seu livro. 2001 inicia na pré-história, há milhões de anos, quando um misterioso monólito surge num deserto e parece ser o catalisador da evolução de primatas humanoides. Milhões de anos depois, na era espacial, um monólito semelhante é encontrado sob a superfície lunar, motivando uma missão espacial que rumava a Júpiter e posteriormente a Saturno. Os cientistas David Bowman e Frank Poole comandam a nave Discovery, junto ao super computador HAL 9000, enquanto outros três tripulantes permanecem em um tipo de hibernação em máquinas especiais, para serem acordados apenas quando chegarem ao destino. Fatos extraordinários abalam a missão, justificando a palavra odisseia do título. O que temos aqui é uma obra incrível, sem paralelo, mostrando como poucas o poder da imaginação humana, a vontade humana de conhecer o que tem para dentro e além de nós, de nosso mundo, de nossa concepção de universo. Me cativou da mesma forma que o filme.
Nota: 10

4. O amor nos tempos do cólera, Gabriel Garcia Márquez
Livro muito comentado e lido em 2020, além de seu título ser usado no trocadilho "o amor nos tempos do corona" (eu mesmo usei bastante). Esse é um dos romances mais conhecidos do mestre Gabo, escrito nos anos 80 logo depois do ano sabático que o escritor se deu após ganhar o Nobel de literatura em 1982. Baseado numa história verdadeira - de seus pais - em que um rapaz apaixonado usava a rede de telégrafos para se comunicar com a amada, cujos pais se opunham ao romance, García Márquez narra uma história de amor e devoção que atravessou décadas. O telegrafista, violinista e poeta Florentino Ariza é um pobre rapaz que se apaixona por Fermina Daza, moça de família rica (apesar dos negócios de seu pai serem obscuros), e passa a se comunicar com ela por cartas durante alguns anos, até que pede sua mão em casamento - carta que demora 4 meses a ter resposta. Depois que o pai de Fermina descobre o namoro epistolar, manda a filha para a casa de parentes em lugares distantes, e é aí que a rede telegráfica é usada para a comunicação do casal. Fermina acaba se casando com um médico aristocrata, mas nem a distância e nem o tempo são capazes de pôr fim ao amor de Florentino. A magistral escrita de Gabriel García Márquez nos proporciona um romance interessante, bonito e até mesmo pitoresco - afinal, estamos falando do mestre do realismo fantástico.
Nota: 10

3. Sobre os ossos dos mortos, Olga Tokarczuk
Certamente minha maior e melhor surpresa literária, já que eu nunca ouvira falar do livro ou da autora, esse romance polonês me foi dado de presente em meu aniversário e me conquistou logo nas primeiras páginas. Nossa protagonista, Janina Dusheiko, é uma professora de inglês aposentada que vive numa região distante e pouco habitada da Polônia, marcada por invernos rigorosos, solidão e temporadas de caça agitadas. Dusheiko, entusiasta de astrologia e poesia inglesa, abomina a caça e é conhecida na vizinhança pela defesa dos animais - inclusive, é vegana, não consumindo nada de origem animal. Quando pessoas ligadas à caça começam a aparecer mortas, em crimes brutais e difíceis de serem explicados, Dusheiko levanta a suspeita de que os animais da região podem estar envolvidos nas mortes, já que sempre havia animais silvestres nas cenas dos crimes. Ao longo do livro a autora explora, além do tema da relação humana com os animais, temas como machismo, preconceito e pessoas que vivem à margem da sociedade. Com um texto fluido e muito envolvente, a obra prende o leitor do começo ao fim.
Nota: 10

2. Hibisco roxo, Chimamanda Ngozi Adiche
Agridoce é uma boa palavra para falar sobre esse romance incrível. A deliciosa narração de Chimamanda nos traz a jovem Kambili, uma adolescente nigeriana, filha de um dos homens mais ricos e poderosos do país. Seu pai, Eugene, é dono de jornal e empresário, e está ainda mais em destaque porque a Nigéria atravessa um delicado período político com a chegada de militares ao poder - a quem ele faz oposição. Mas o principal tema do livro é o impacto da chegada do catolicismo ao país; o pai de Kambili se converteu à Igreja Católica, abandonando as tradições locais, as quais chama de pagãs, chegando ao ponto de cortar todas as relações com seu pai. Seguimos com Kambili enquanto ela conhece a vida para além dos altos muros da mansão da família e do rígido controle do seu pai, especialmente quando ela passa a manter contato com uma tia professora e seus primos que não têm a mesma vida de conforto que ela. Livro denso, rico, muito emocionante. Imperdível.
Nota: 10

1. Por quem os sinos dobram, Ernest Hemingway
Provavelmente o melhor livro de Hemingway, esse foi o primeiro livro que li em 2020 e nenhum dos que vieram depois lhe tirou a posição de melhor livro lido no ano. Ao longo de mais de 600 páginas acompanhamos o americano Robert Jordan, combatente da Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos, que recebe a missão de explodir uma ponte na região de Segóvia. A narração acompanha poucos dias na vida do rebelde, mas são dias suficientes para que ocorra uma mudança importante em seu interior - uma pessoa seca, objetiva, calculista, alcançando a humanidade. Além de Jordan, outras personagens marcantes são apresentadas, todas elas fundamentais para o processo de mudança sofrido pelo protagonista. Esse livro maravilhoso é marcado pela sempre presente sinceridade do autor, e aqui, num nível ainda mais elevado que nas outras obras. Hemingway trabalhou como jornalista cobrindo a Guerra Civil Espanhola, e deixa transparecer em seu livro a crueza e horrores da guerra, e o que ela provoca nos corações dos homens.
Nota: 10

Luís F. Passos

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Filmes pro final de semana - 25/09 - Especial Almodóvar


1. Os amantes passageiros (Los amantes pasajeros, 2013)
Os amantes passageiros é uma história passada nas alturas, num voo que sai de Madri para o México, mas que por problemas no trem de pouso precisa ficar sobrevoando a Espanha enquanto não se descobre uma solução. A tripulação dá soníferos a todos os passageiros da classe econômica, mas os da primeira classe ficam acordados e se transformam em personagens de uma louca comédia: a cafetina de luxo que guarda segredos de homens poderosos, a mulher com poderes sobrenaturais que se apaixona por uma ereção (!!!), um pai que há muito tempo não vê a filha que fugiu de casa, o chefe dos comissários de bordo que é amante do comandante casado. Uma história novelesca e impagável que se afasta um pouco dos dramalhões envolvendo gays e aborda a temática de um modo muito mais leve e divertido. Prova do talento e versatilidade de Almodóvar.
Nota: 8,0/ 10

2. A pele que habito
 (La piel que habito, 2011)
Fúria. Loucura. Paixão. Elementos novelescos e claro, onipresentes da obra de Pedro Almodóvar. Este filme de 2011 ganhou imensa popularidade por trazer esses três elementos com mais intensidade que o normal a ponto de chocar o espectador; muitos o classificam como terror – mas a intenção aqui não é apavorar o espectador, e sim impressionar, e muito. Antônio Banderas interpreta um cirurgião plástico muito competente, um cientista inovador cujo único, mas grande defeito é o desprezo à ética. Um de seus mais promissores e polêmicos trabalhos é o desenvolvimento de uma pele artificial cuja aparência é a da pele humana, mas é mais resistente. E para cobaia, ele usa alguém que fez coisas que o atingiram fortemente naquilo que ele considerava mais precioso. O que? Assista para descobrir. Garanto que é um prazer imenso descobrir os segredos que Almodóvar tem a revelar pouco a pouco e que deixou boquiabertas plateias de todo o mundo.
Nota: 9,0/ 10

3. 
Volver (2006) 
Voltando a trabalhar com fortes personagens femininas, Almodóvar dirige a história das irmãs Raimunda (Penélope Cruz) e  Sole (Lola Dueñas), que perderam os pais num trágico incêndio. O maior destaque da história vai para Raimunda, que logo no início do filme se vê diante da morte do marido pela sua própria filha, que o matara para se defender de abuso sexual. Mãe protetora, Raimunda decide esconder o cadáver para proteger sua filha. Na mesma noite, Sole viaja para o enterro de sua tia Paula, uma idosa debilitada que quando viva jurava para as duas irmãs que era a falecida mãe delas, Irene, quem cuidava dela na velhice - e as irmãs achavam que a tia estava ficando caduca. Mas acontece o impensável: Sole encontra sua falecida mãe mais viva do que nunca no porta-malas de seu carro. Estamos diante do sobrenatural? É a indagação que Almodóvar conduz pelo filme, com sua habilidade única de revelar aos poucos os mistérios de suas obras. Além das marcas do diretor espanhol, Volver tem como principal mérito as atuações de suas protagonistas, vencedoras do prêmio de atuação feminina em Cannes (foram cinco vencedoras empatadas), e talvez a melhor atuação da carreira de Penélope Cruz.
Nota: 8,5/ 10

4. Fale com ela
 (Hable con ella, 2002)
Esse é um dos meus dez filmes favoritos; já o vi várias vezes e sempre me emociono. A história é simples: o repórter Marco (Darío Grandinetti) se envolve com a promissora toureira Lydia (Flores), que ao sofrer um grave acidente entra em estado de coma profundo. Na clínica em que Lydia é internada Marco conhece o enfermeiro Benigno (Javier Cámara), que é apaixonado por sua paciente Alicia. Os dois amigos se veem na mesma situação, buscando o amor de mulheres permanentemente inconscientes - o "fale com ela" do título é um conselho que Benigno dá ao repórter para que este tente diminuir sua dor. Almodóvar utiliza poesia e sutileza para contar essas tristes histórias que se encontram e são tão semelhantes, se afastando um pouco de seu estilo em que personagens femininas e homossexuais se destacam, dando lugar a dois protagonistas masculinos e heterossexuais, e trocando a tradicional turbulência pela delicadeza da dança (inclusive as touradas são suavizadas e comparadas ao balé) e músicas bonitas e tristes, como Cucurrucucu paloma, interpretada por Caetano Veloso.
Nota: 10

5. Tudo sobre minha mãe (Todo sobre mi madre, 1999)
Este longa de 1999 é centrado em Manuela (Cecilia Roth), enfermeira que perde seu único filho num acidente depois de assistir à peça Uma rua chamada pecado. Ela então vai à Barcelona em busca do pai do garoto para dar a notícia, mas não o encontra; quem ela reencontra é a travesti Agrado (Antonia San Juan), sua amiga de muitos anos atrás, e através de quem conhece a freira Rosa (Penélope Cruz), que descobre estar grávida e soropositiva. Manuela se vê mantendo Rosa sob seus cuidados e responsabilidade ao mesmo tempo em que se aproxima do elenco de Uma rua chamada pecado, cuja protagonista Huma (Marisa Paredes) vive Blanche DuBois dentro e fora dos palcos. Com referências ao cinema clássico, Almodóvar mais uma vez constrói perfis femininos através da ótica de um homem crescido entre mulheres, especialmente a figura materna simbolizada por Manuela. O resultado é um filme maravilhoso, vencedor do Prêmio de direção de Cannes e do Oscar de melhor filme estrangeiro.
Nota: 10


Luís F. Passos

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Filmes pro final de semana - 04/09


1. Bravura Indômita
 (True grit, 2010)
Primeiro filme totalmente de cowboys dos Irmãos Coen, Bravura indômita é a segunda adaptação para o cinema do romance homônimo, sendo a primeira de 1969 com John Wayne, que ganhou um Oscar por sua atuação. No longa, Mattie Ross (Hallee Steinfeld) é a filha de um homem morto covardemente por um de seus ajudantes, Tom Chaney (Josh Brolin) e deseja fazer justiça, por mais difícil que seja sua missão. Para isso ela contrata Rooster Cogburn(Jeff Bridges), um caçador de recompensas velho, beberrão e mal humorado. A contragosto de Cogburn, Mattie o acompanha na busca do bandido, apesar de ter apenas 14 anos; a eles se junta LaBoeuf (Matt Damon), um patrulheiro texano que também tem bons motivos para perseguir Chaney. Não surpreendentemente, o trio vai criando afeto aos poucos e acabam se dando bem, unidos na árdua tarefa. Também não surpreendentemente, este é um filmaço. Por ser a segunda versão de um filme tão bem sucedido como foi o de 1969 e ter à frente os talentosos Coen, criou-se uma expectativa imensa e ninguém saiu decepcionado. O elenco é ótimo, o modo como é mostrada a dura realidade do velho Oeste é incrível e o desfecho (que aliás é diferente do filme de 69) é digno de aplausos.
Nota: 9,0/ 10

2. Amor sem escalas
 (Up in the air, 2009)
Ryan (George Clooney) é um profissional de uma empresa que é contratada por outras empresas para demitir seus empregados. Todos os dias ele fica de frente a dezenas de pessoas que nunca viu na vida e diz "seus serviços não são mais necessários". E de um trabalho para outro, Ryan viaja de avião, seu maior prazer. A cada ano ele passa quase trezentos dias fora de casa - aliás, onde é realmente sua casa? Para ele, seu lar são os aeroportos, as salas de espera, as confortáveis poltronas executivas da American Airlines. Tudo na vida de Ryan é emprego, voo, e a meta de acumular dez milhões de milhas aéreas. Para mudar isso, surge o casamento de sua irmã caçula, uma nova colega de trabalho que tem ideias que podem mudar radicalmente seu estilo de vida e uma misteriosa mulher que parece ser sua versão feminina. Uma ótima reflexão sobre a vida que cada um quer levar e sobre a crise econômica de 2008/09.
Nota: 10

3. Beleza Americana
 (American Beauty, 1999)
Um verdadeiro tapa na cara da classe média americana. Lester Burnhan (Kevin Spacey), o protagonista, é um pai de família cansado e entediado na monótona vida de típico trabalhador, com um emprego medíocre e muitas frustrações na vida profissional e pessoal. É casado com a famigerada Carolyn (Annette Bening), uma corretora de imóveis ambiciosa que se esforça para manter as aparências de família feliz, apesar do casamento desgastado, e sufoca a filha adolescente Jane (Thora Birch) com exigências, na tentativa de transformá-la numa garota prodígio. A história pega impulso com o surgimento de Angela (Mena Suvari), colega de Jane, por quem Lester se apaixona no auge de sua crise de meia-idade. A partir daí, a relação da família Burnhan com Angela, com os vizinhos Fitts e consigo mesma se torna uma sátira sobre beleza e satisfação pessoal, apunhalando sem piedade o desgastado sonho americano. O filme é cínico, dinâmico, provocante e envolvente. Merecidamente vencedor de cinco Oscar, incluindo melhor filme, diretor e ator (Spacey).
Nota: 10

4. A Época da Inocência
 (The Age of Innocence, 1993)
Maiores desafios mostram maiores talentos. No cinema não é diferente; filmes complexos ou que precisam de maior cuidado, quando bem feitos, revelam o talento de seu diretor. A Época da Inocência é um exemplo, no caso mais um exemplo, da competência de Martin Scorsese. Fazer um filme de época sem que tudo pareça um baile de fantasias é tarefa árdua, e Scorsese não desapontou. A trama ambientada na aristocracia novaiorquina do século 19 acompanha o jovem casal Newland Archer (Daniel Day-Lewis) e May Welland (Winona Ryder), apaixonados e de casamento marcado. O surgimento da condessa Ellen Olenska (Michelle Pfeiffer), recentemente divorciada de um nobre europeu balança os sentimentos de Newland, que fica dividido entre a noiva angelical e a condessa sedutora. O fato de ser um amor impossível só aumenta o desejo do jovem. As angústias de Newland e Ellen são mostradas através do domínio de câmera que é velho conhecido dos fãs de Scorsese, que também retrata os costumes, vícios e esqueletos no armário de uma sociedade moralista que também tem seu teto de vidro.
Nota: 9,0/ 10

5. Psicose (Psycho, 1960)
Quando Marion Craine (Janet Leigh) rouba uma fortuna de seu patrão e foge em direção à Califórnia, não poderia imaginar o peso de seus atos ao seu futuro - ou o efeito de tal ação ao cinema mundial. Mesmo com um orçamento limitado e diversas adversidades, Alfred Hitchcock conseguiu fazer de Psicose seu mais bem sucedido filme, chocando plateias onde era exibido ao mostrar uma violência praticamente inédita e os lobos em peles de cordeiro que estão em todo lugar. A parada de Marion num motel de beira de estrada, seu breve contato com o dono do lugar, Norman Bates e seu repentino e sangrento assassinato inauguraram uma nova era no terror, mostrando o homem tão cruel quanto qualquer fera sobrenatural.
Nota: 10
 
Luís F. Passos

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Filmes pro final de semana - 21/08

1. Sergio (2020)

Produzido e estrelado por Wagner Moura, esse original da Netflix mostra parte da carreira do diplomata Sergio Vieira de Mello (Moura), Alto Comissário de Direitos Humanos que vai para Bagdá na Guerra do Iraque para coordenar a equipe que planejava a reconstrução e redemocratização do país. Vítima fatal de um atentado à bomba, Sergio tinha uma carreira brilhante e altas chances de ser o próximo Secretário-Geral das Nações Unidas. O filme mostra sua permanência no Iraque e momentos importantes de sua carreira, como a atuação na independência do Timor Leste, além de detalhes de sua vida pessoal - a distante relação com os filhos e o namoro com a colega da ONU Carolina Larriera (Ana de Armas), que após sua morte foi reconhecida como sua esposa. Pouco documental e emocionante na medida certa, o filme tem um ótimo elenco, capitaneado pelo sempre excelente Wagner Moura.
Nota: 8,0/ 10
2. Brooklyn (2015)
Essa carismática comédia romântica é centrada em Ellis (Saoirse Ronan), uma jovem irlandesa que deixa sua terra natal porque sonhava com algo diferente de casar e ser dona de casa - destino de todas as moças de sua cidade. Ela então se muda para os Estados Unidos e vai morar no Brooklyn, onde arruma emprego e começa a conhecer novas pessoas. Quando conhece o simpático e divertido bombeiro Tony (Emory Cohen), descente de italianos, Ellis acredita ter conhecido o amor de sua vida e que todo seu futuro está definido, mas acontecimentos na Irlanda põem a garota numa encruzilhada para decidir entre o amor e o dever familiar.
Nota: 8,0/ 10
3. Tim Maia (2014)
A cinebiografia do genial e autodestrutivo cantor brasileiro é baseado em livro do crítico Nelson Motta. Vemos a infância pobre, o início da carreira na adolescência (tendo Robson Nunes como intérprete)- ao lado de Roberto Carlos, que seguiu caminhos diferentes - , a ida aos Estados Unidos e o retorno ao Brasil (já interpretado por Babu Santana) trazendo uma imensa influência do soul e do funk. Ótimo compositor e extraordinário cantor, Tim Maia surfou em ondas de sucesso que quebravam devido à sua personalidade forte e pavio curto, além de acontecimentos bizarros como sua participação na seita da Cultura Racional, que rendeu três discos com letras estranhas mas com melodias e arranjos sensacionais. Apesar das críticas negativas de familiares e amigos, que apontaram algumas incoerências no longa, o filme tem seus méritos e merece ser assistido.
Nota: 8,5/ 10 
4. A lista de Schindler (Schindler's list, 1993)
Talvez seja o mais aclamado filme de Steven Spielberg, e é um dos que mais gosto (meu preferido dele é A cor púrpura). Quase todo mundo já viu, e quem não viu deve ver. Baseado na história real do empresário alemão que salvou milhares de vidas, A lista de Schindler é um filme que emociona sem ser apelativo. Mostra como Schindler (Liam Neeson), um industrial que empregava judeus de um gueto, consegue se esquivar da máquina mortífera da SS e livrar os moradores do gueto de serem enviados a Auschwitz, onde a morte era quase inevitável. O filme traz cenas inesquecíveis como a do oficial psicopata Amön Goth (Ralph Fiennes) praticando tiro ao alvo em pessoas e a marcha dos judeus saindo do gueto, com uma pequena garota vestida de vermelho (único elemento colorido do filme, que é em preto e branco) andando à frente.
Nota: 10
5. Ladrão de casaca (To Catch a Thief, 1955)
Um dos filmes mais elegantes de Alfred Hitchcock traz Cary Grant como o bon vivant John Robie, ex-ladrão de joias conhecido como Gato, devido a suas habilidades em invadir apartamentos e fugir por telhados. O bonitão corre o risco de ser preso quando começa uma onda de roubos de joias na Riviera Francesa, já que o estilo dos crimes é idêntico ao seu. Para provar sua inocência ele tenta seguir o rastro dos crimes, contando com a ajuda da charmosa e mimada Frances Stevens (Grace Kelly), filha de uma milionária que é um alvo em potencial do novo Gato. Charmoso e intenso, este é mais um bom representante da obra do Mestre do suspense.
Nota: 9,5/ 10

Luís F. Passos

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Filmes pro final de semana - 14/08

1. O Impossível (Lo impossible, 2012)
Baseado em fatos reais e com um imenso apelo emocional, O impossível acompanha uma família que estava passando férias na Tailândia quando o país foi atingindo por tsunami no fim de 2004. O casal Maria (Naomi Watts) e Henry (Ewan McGregor) é separado: ela vai para um lado com o filho mais velho, enquanto ele está com os dois mais novos. Gravemente feridos, famintos e desidratados, eles vagam por um país destruído, repleto de ruínas e amontoados de corpos. O filme relembra uma tragédia que marcou não apenas seus sobreviventes, mas todo o mundo que assistiu perplexo à destruição causada pela força da natureza. Eu já disse que é emocionante? É muito. Muito. Naomi Watts faz aqui seu melhor trabalho, numa atuação antológica que injustamente perdeu o Oscar para Jennifer Lawrence - apenas verdades.
Nota: 8,0/ 10
2. As vantagens de ser invisível (The perks of being a wallflower, 2012)
Esse filme é um presente do circuito independente ou semi-independente para o mundo. Baseado num livro homônimo escrito pelo diretor e roteirista do filme, Stephen Chbosky, o longa é centrado em Charlie (Logan Lerman), um adolescente solitário  de 16 anos que está entrando no ensino médio, tentando lidar com a pressão típica da fase ao mesmo tempo em que é assombrado por terríveis traumas do passado, que aos poucos são revelados. A solidão de Charlie diminui quando ele conhece os irmãos Patrick (Ezra Miller) e Sam (Emma Watson), ambos veteranos prestes a concluir o ensino médio. Patrick é muito extrovertido e descolado, meio porra-louca; Sam, a bela colegial, é gentil e simpática, cheia de vida - e logo percebe-se que Charlie se apaixona por ela. Através dos dois, que se tornam seus melhores amigos, o protagonista conhece gente nova, novos ambientes, novas experiências, ganhando um sopro de vida em seu cotidiano mórbido. Mas nem tudo são flores, e aos poucos as fragilidades, medos, inseguranças e segredos dos outros também vêm à tona, e vemos que Charlie não é o único perdido e em busca de formar uma identidade pessoal - um dos temas centrais deste emocionante, carismático e incrível filme.
Nota: 10
3. O Vencedor (The fighter, 2010)
Micky Ward (Mark Wahlberg) é um lutador muito esforçado, que tem como exemplo e treinador seu irmão mais velho, Dicky Eklund (Christian Bale). Dicky é um ex-lutador de boxe profissional, atualmente no fundo do poço devido ao seu vício em crack, que é tido como  herói de sua cidade por ter vencido uma luta importante anos atrás. O problema é que Dicky é tão desequilibrado e inconsequente que acaba puxando pra baixo a carreira de seu irmão. As outras duas figuras chave na vida de Micky são sua mãe possessiva Alice (Melissa Leo) e sua namorada Charlene (Amy Adams), que vê a família de Micky como um grande empecilho para seu sucesso. O pior é que Charlene tem uma certa razão, e ao perceber isso o lutador se afasta um pouco da mãe, do irmão e das sete irmãs barangas decidido a impulsionar sua carreira; aos poucos, Dicky também percebe o mar de lama em que está mergulhado e decide que precisa mudar sua vida. Nessa muito bem elaborada trama familiar, três atuações se destacam: as de Christian Bale, Melissa Leo e Amy Adams, sendo as duas primeiras vencedoras do Oscar de ator e atriz coadjuvante, respectivamente. Mais uma vitória desse filme sobre fracassados.
Nota: 9,0/ 10
4. Babel (2006)
Qual a relação existente entre crianças numa aldeia remota no Marrocos, um casal de turistas americanos, uma menina deficiente auditiva japonesa e uma mexicana que trabalha nos Estados Unidos? A bem amarrada série de tramas que é Babel vai mostrar isso. A partir de um infeliz acidente nas montanhas marroquinas, onde um tiro de rifle atinge uma americana que viajava num ônibus, tem início uma crise diplomática entre o Marrocos e os Estados Unidos, que acreditam se tratar de um atentado terrorista. Por outro lado, a investigação vai buscar a origem de tal rifle, que remonta ao Japão; da mesma forma, na América, a família da mulher ferida, cuja babá é mexicana, também será atingida, numa mal aventurada breve viagem ao México. Direção de Alejandro González Iñarritu e participação de grande elenco.
Nota: 9,0/ 10
5. Ghost - do outro lado da vida (Ghost, 1990)
A estória todo mundo conhece: Sam (Patrick Swayze) é noivo de Molly (Demi Moore) e é vítima fatal de um assalto, mas depois de morto recusa-se a deixar o plano terreno e a sua amada. Acompanhando Molly, ele descobre que sua morte não fora um crime ao acaso e que os responsáveis agora são uma ameaça à sua viúva. Ele, então, procura ajuda da médium Oda Mae Brown (Whoopi Goldberg), uma vigarista que acreditava não ter poderes paranormais, mas que os descobre com a presença de Sam. Esse clássico da Sessão da Tarde sobre um amor tão grande que nem a morte foi capaz de separar é piegas e tem lugar cativo no coração de quem se emocionou ao som de Unchained melody (oooh my love, my darling...) e vendo as cenas ora comoventes, ora engraçadas - créditos para a personagem de Whoopi Goldberg, vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo hilário papel de Oda Mae.
Nota: 10


Luís F. Passos

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Filmes pro final de semana - 07/08

1. Oito mulheres e um segredo (Oceans'8, 2018)
Spin-off da aclamada trilogia Ocean's - no Brasil, 11 homens e um segredo e aí por diante -, liderada por George Clooney, o filme traz Sandra Bullock no papel de irmã do personagem de Clooney. Debbie Ocean (Bullock) sai da cadeia e encontra sua parceira de longa data, Lou (Cate Blanchett), e as duas começam a acertar os detalhes de um plano que Debbie elaborou durante os anos em que ficou presa: o roubo de um lendário colar de diamantes que vale centenas de milhões de dólares. Para isso, montam um grupo que envolve uma hacker (Rihanna), uma estilista falida (Helena Bonham Carter), uma ladra profissional (Awkwafina), uma fabricante de joias (Mindy Kaling) e uma contrabandista (Sarah Paulson). Mirando a atriz Daphne Kugler (Anne Hathaway), que usará o colar num jantar de gala, a quadrilha liderada por Debbie nos dá um filme que não é apenas uma versão feminina da trilogia protagonizada por George Clooney, apesar de usar e abusar da mesma fórmula. Ser mulher faz parte do plano: "Se for ELE, é notado. Se for ELA, é ignorada. E pela primeira vez, queremos ser ignoradas", diz Debbie às suas companheiras.
Nota: 8,0/ 10
2. O estranho que nós amamos (The Beguiled, 2017)
Um filme que traz a assinatura de Sofia Coppola a cada cena - assim, podemos resumir a essência de O estranho que nós amamos, o que é suficiente para dar motivo para este longa ser visto, considerando a sólida obra que a diretora produziu nos últimos vinte e poucos anos. Ambientado no estado da Virgínia em plena  Guerra Civil, o filme se passa num casarão onde funciona uma escola para moças, dirigida por Martha Farnsworth (Nicole Kidman); as outras ocupantes da escola são a professora Edwina (Kirsten Dunst) e cinco alunas de diferentes idades. A tediosa rotina da escola muda quando um soldado ianque (Colin Farrell) é encontrado nas proximidades da propriedade gravemente ferido e é acolhido pelas sete mulheres. A intenção inicial é salvar o militar para entregá-lo às tropas sulistas assim que ele estivesse recuperado, mas com o passar do tempo surgem desejos e interesses pelo estranho - uns inocentes, outros nem tanto. Num clima introspectivo, sóbrio e repressivo, Sofia Coppola conduz uma parábola sobre desejo e manipulação, demonstrando talento de sobra na direção - trabalho reconhecido com o Prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes.
Nota: 9,5/ 10
3. Spotlight - segredos revelados (Spotlight, 2015)
O ano é 2001 e o jornal The Boston Globe tem um novo editor-chefe, Marty Baron (Liev Schreiber). Logo em seus primeiros dias após assumir o comando do jornal, Baron se interessa por uma coluna assinada pelo excêntrico advogado Mitchell Garabedian (Stanley Tucci), a qual dizia que o arcebispo de Boston tinha conhecimento de casos de abuso sexual praticados por padres e não fazia nada a respeito - apenas mudava os padres de paróquias. Baron convoca a equipe Spotlight, especializada em jornalismo investigativo, para assumir o tema. Liderados por Walter Robinson (Michael Keaton), os jornalistas da Spotlight enfrentam a difícil tarefa de encontrar vítimas e extrair depoimentos, e o desafio ainda maior de ter conseguir provas contra membros da poderosa e influente Igreja Católica de Boston. Neste filme intenso e despretensioso, o espectador é colocado dentro da redação do jornal, nos bastidores da notícia, presenciando o difícil e minucioso trabalho do jornalismo investigativo - trazendo à lembrança filmes como o maravilhoso Todos os homens do presidente, de 1976. Spotlight venceu os Oscar de melhor filme e melhor roteiro original.
Nota: 9,5/ 10
4. Quincas Berro d'Água (2010)
Quando Quincas Berro d'Água (Paulo José), o rei dos vagabundos da Bahia, foi encontrado morto no dia do próprio aniversário, uma nuvem de tristeza pairou sobre o Pelourinho e pelos cais de Salvador. Sendo muito bem quisto pelos bêbados, prostitutas, pescadores e jogadores, sua morte pôs de luto todos os marginalizados e personagens da noite que o conheciam. A notícia da partida de Quincas promove o inusitado encontro dos dois lados de sua vida: seus amigos pobres e boêmios, que dividiram com ele os últimos anos, e a família de classe média que ele largou por não suportar mais a pacata e hipócrita vida de funcionário público e cidadão exemplar. Depois de os amigos vagabundos conseguirem se livrar dos familiares do defunto, uma série de fatos estranhos os faz acreditar que Quincas estava vivo e pregando uma peça neles. A turma então percorre as vielas e becos, por bares, terreiros de candomblé e prostíbulos, fazendo algazarra enquanto os parentes e a polícia tentam encontrá-los e sua filha Vanda (Mariana Ximenes) mergulha em lembranças da infância com o pai exemplar e sua posterior transformação em pária da família. Baseado numa das mais conhecidas novelas de Jorge Amado, o filme é fiel à obra ao retratar tão bem arquétipos da noite e dos problemas sociais da Bahia.
Nota: 9,0/ 10
5. O segredo dos seus olhos (El secreto de sus ojos, 2009)
Argentina, 2009. Benjamín Esposito (Ricardo Darín) é um oficial de justiça (meio delegado, meio investigador) recém aposentado que decide ocupar o tempo livre escrevendo um livro a partir das memórias de um caso marcante que ele investigara vinte e cinco anos antes. Era 1974 e a Argentina vivia sob um governo ditatorial, uma época de bastante violência, não apenas relacionada à política. O departamento de Esposito recebeu a missão de investigar o estupro seguido de morte de uma jovem; um crime bárbaro que ganhou repercussão. Durante a investigação ele conhece o marido da vítima, Ricardo (Pablo Rago), por quem desperta empatia e passa a ter uma relação cordial, chegando a prometer encontrar o culpado. A difícil missão de Esposito conta com a ajuda de seu parceiro alcoólatra Pablo Sandoval (Guillhermo Francella) e de Irene Hastings (Soledad Villamil), sua chefe imediata - por quem Esposito nutre uma paixão secreta. O filme tem o mérito de unir investigação policial, romance e análise histórica numa história muito intensa e envolvente, vencedora do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e do Prêmio Goya.
Nota: 10


Luís F. Passos

terça-feira, 12 de maio de 2020

Crepúsculo dos deuses - Billy Wilder, 1950

Um dos temas preferidos de Hollywood é falar sobre si, sobre o processo criativo e os bastidores da indústria do cinema. É um tópico bastante recorrente desde a chamada época de ouro do cinema clássico até os filmes contemporâneos. Um dos filmes que mais se aprofunda nos aspectos psicológicos envolvidos com a fama e a idolatria que cerca as grandes estrelas é Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard, 1950), clássico indispensável para qualquer amante de cinema.
O filme traz o relacionamento complexo entre um jovem e falido roteirista chamado Joe (Willian Holden) e uma antiga estrela do cinema chamada Norma Desmond (Gloria Swanson). Os dois se conhecem por um acaso quando ele acaba escondendo na mansão da atriz enquanto fugia de funcionários do banco que lhe perseguiam para tomar seu carro por falta de pagamento. Na interação entre os dois, parece se formar uma relação bem simples e até vantajosa para Joe. Em troca de um abrigo (quase um esconderijo) e um bom salário, Joe trabalharia junto com Norma fazendo revisões em um roteiro escrito pela atriz como sua tentativa de voltar ao estrelato.
Temos aqui duas figuras vivendo momentos completamente diferentes em suas vidas, mas ambos no limite. Joe é jovem, mas a situação financeira que ele vive é tão séria que não parece haver grandes opções para ele que não voltar para sua cidade natal e desistir do sonho de uma carreira dentro do cinema. Esta é uma das faces de Hollywood que o filme traz: a difícil jornada para o estrelato. Apesar da grande propaganda de terra de oportunidades, fazer uma carreira dentro do cinema é extremamente difícil. Mesmo que tenha tido um aparente bom começo, Joe encontra-se desempregado e num difícil processo artístico, visto que não consegue encontrar o balanço entre tornar sua arte relevante e ao mesmo tempo comercial. A mesma cidade que se maquia de cidade dos sonhos é bastante cruel com sonhadores. Joe é, então, um homem cínico e cético que não tem muito a perder – e quem não tem nada a perder está disposto a muitas coisas.
Norma Desmond não é uma atriz qualquer, mas sim uma das maiores estrelas do cinema mudo. A maior de todas (como gosta de frisar), mas seus dias de glória há muito ficaram para trás com a mudança na maneira de fazer cinema que veio com o advento da fala e com a extinção do cinema mudo. A mesma indústria que alimentava o ego de suas estrelas, e que as elevava ao status de deuses, simplesmente virou as costas para eles, jogando-os ao esquecimento e a lembranças e ilusões de um passado glorioso e distante. A maneira como o estrelato e a exclusão são capazes de perverter a mente humana é o grande foco do filme. Norma é completamente desconectada com a realidade, agarrada fielmente a um passado que não vai voltar e a crenças cegas de que o público e a indústria não a descartaram. Sua negação é tão grande que ela demonstra profundo desprezo pelo cinema falado, quase como se esta fosse uma forma inferior de arte e como se a culpa pelo seu sofrimento fosse o áudio e não as pessoas que se aproveitaram de sua imagem. Em suas próprias palavras: eu sou grande, os filmes é que ficaram pequenos. A maneira como ela se agarra à grandiosidade é digna de pena (inclusive por parte de Joe) e reverbera na manutenção de hábitos do passado, em relações pontuais com antigos amigos também envolvidos no cinema mudo e no apego a bens materiais decadentes, mas com toda a extravagância digna de Gatsby e dos anos 20. Quando a realidade torna-se inevitável, Norma demonstra toda sua fragilidade emocional e deixa à mostra grande tristeza e vulnerabilidade.
Outro aspecto que o filme aborda de maneira bem pertinente é o processo de envelhecimento diante das telas e de como isso é um problema para as atrizes. ATRIZES, não atores. Quando acredita que seu projeto realmente vai sair do papel, Norma entra em um processo obsessivo de “embelezamento”, se submetendo a diversos e desconfortáveis tipos de tratamento para tentar aparentar ser mais jovem. Esse é um problema que atrizes vivenciam até hoje. É muito comum que atrizes tenham seus anos mais prolíficos no cinema em torno de seus 20 a 30 anos de idade e que a partir de certa idade o número de ofertas de papéis interessantes diminui consideravelmente, além de muitas acabarem sendo encaixadas em personagens engessados ou figuras específicas como a mãe, a esposa ou a professora. Mesmo hoje, poucas atrizes conseguem quebrar com frequência os estereótipos que vêm com a idade, o que não se vê na mesma intensidade com os homens. Em certo momento, Joe critica – e até ridiculariza – Norma pelo seu desespero em tentar parecer uma mulher de 25 anos, mas não parece se atentar muito à origem do problema, o que também é algo que fazemos com frequência nos dias de hoje, com uma mídia focada em apontar “falhas” e criticar a aparência de atrizes e de mulheres em evidência no geral.
Em um toque de genialidade na escolha do elenco, Gloria Swanson vive Norma. É genial, pois no sentido mais íntimo da questão Gloria e Norma são até certo ponto a mesma pessoa, visto que a atriz Gloria Swanson, assim como a personagem Norma Desmond, foi uma atriz de reconhecimento gigante no cinema mudo que teve sua carreira arrasada pelo envelhecimento e pelo crescimento do cinema falado.
Crepúsculo dos deuses vai fundo na ferida e critica a maneira hollywoodiana de tratar pessoas como bens materiais descartáveis de uma forma que o torna relevante mesmo hoje, 70 anos após seu lançamento. É um dos melhores filmes do Billy Wilder (isso não é pouca coisa) e um dos melhores clássicos do cinema estadunidense.

Nota: 10

Lucas Moura

Leia também:

sábado, 18 de abril de 2020

Me chame pelo seu nome – Luca Guadagnino, 2017


Em um belo verão no norte da Itália, um estudante estadunidense passa algumas semanas realizando um estágio sob a tutela de um renomado professor (Michael Stuhlbarg). Neste período, o rapaz não apenas trabalha como experimenta a vida local e compartilha de momentos de lazer e socialização junto à família de seu professor, que o acolhe não apenas como um estudante, mas como um querido e bem vindo convidado. Na casa, além do professor, residem sua esposa, seu filho e os funcionários locais. São semanas de cochilos preguiçosos ao sol, vinhos, comida, música, dança, flertes, livros e banhos refrescantes, tudo emoldurado com as mais bucólicas paisagens que a Itália pode oferecer. O cenário perfeito para aproveitar a vida. O cenário perfeito para se apaixonar.
Me chame pelo seu nome (Call me by your name, 2017) não é um filme de romance qualquer. O filme que, à primeira vista, relata a história de amor entre Elio (Timothee Chalamet) e Oliver (Armie Hammer), na verdade se apresenta como um profundo estudo de personagens. Apesar de o parágrafo inicial deste texto não deixar muito claro, o grande protagonista de Me chame pelo seu nome é Elio, filho do professor. O filme é centrado na visão de Elio e em como ele viveu este verão com a avassaladora paixão que se desenvolve entre ele e Oliver.
Não é um filme apenas sobre amor em si, mas sobre o processo de se apaixonar e o entusiasmo igualmente inocente e excitante de amar e ser amado pela primeira vez. Apesar de que, em teoria, o enredo nos força a nos apaixonar por Oliver, é por Elio que o espectador realmente desenvolve uma profunda conexão. Com 17 anos, Elio vivencia toda a enxurrada de emoções e incertezas caracteristicamente marcantes do término da adolescência, então todos os seus sentimentos simplesmente explodem na tela das maneiras mais íntimas possíveis. Conseguimos sentir sua ansiedade por chamar atenção do amado e por ser correspondido pelo mesmo, as dúvidas sobre seus sentimentos, a intensidade de sua sexualidade e até mesmo o desconforto de suas atitudes muitas vezes desengonçadas. Elio está entrando de cabeça em um mundo de sentimentos adultos que desafiam toda a vivência que seus poucos anos podem lhe oferecer. A maneira como é possível enxergar pelo menos um pouco de cada um de nós em Elio é tão efetiva (graças à atuação impecável e merecedora de Oscar de melhor ator de Timothee Chalamet) que é impossível não se identificar com o personagem, mesmo que este viva uma vida de privilégios e refinamento que simplesmente parece irreal, algo quase como um conto de fadas estranhamente intelectualizado. Me chame pelo seu nome é, portanto, muito mais que um filme de romance regular, mas sim um coming of age.
Uma das coisas que nitidamente mais fazem com que Elio sinta-se atraído por Oliver é a maneira como este parece estar sempre muito confortável com seu corpo, com seus atos. A segurança que este demonstra sobre si e em relação aos outros. Boa parte da manifestação de sentimentos em Me chame pelo seu nome – o que, inclusive, é trazido de maneira bem sensata pelo título e pela forma carinhosa como um se refere ao outro pelo próprio nome em momentos de intimidade – vem justamente do fato de ter o amor como um agente de aproximação entre duas pessoas que desejam tornar-se um o complemento do outro. Da mesma forma que Elio aprecia em Oliver e deseja para si toda a sua aparente confiança, Oliver deseja neste de maneira quase invejável a coragem em demonstrar seus sentimentos e a liberdade que um seio familiar tão acolhedor é capaz de promover para que este se expresse de uma maneira que Oliver dificilmente poderia fazer dentro de seu contexto pessoal.
É curioso que, ao contrário da maioria dos filmes que possuem casais LGBTQ+ no foco principal, Me chame pelo seu nome não gira em torno de orientação sexual propriamente dita. Obviamente, é impossível não esbarrar no tema em diversos momentos e a sexualidade define muito do comportamento e da maneira como eles conduzem seu relacionamento durante aquelas semanas, mas o ponto central aqui é o amadurecimento pessoal de Elio. O envolvimento entre dois homens é tratado de maneira orgânica, delicada e em um cenário de aceitação, algo muito distinto do que se pode ter na maioria dos filmes com casais LGBTQ+ que, em virtude de o mundo ser como é, comumente trazem enredos trágicos. O filme, inclusive, tem um pequeno monólogo dado pelo pai de Elio sobre a necessidade de aceitar os sentimentos, o amor em suas diferentes formas e permitir-se sofrer como forma de crescimento pessoal que provavelmente é um dos melhores monólogos do cinema estadunidense dos últimos anos.
Todos esses amores e angústias culminam com uma das minhas cenas preferidas de encerramento em um filme. Ao som da perfeita canção Visions of Gideon (do genial Sufjan Stevens), Me chame pelo seu nome deixa uma última e silenciosa mensagem: na tristeza ou na alegria, a vida é feita para ser sentida e sentimentos sempre valem a pena.

Nota: 10

Lucas Moura

terça-feira, 14 de abril de 2020

Lady Bird - Greta Gerwig, 2017


A obra-prima de Greta Gerwig foi um dos maiores sucessos comerciais dentro do cinema alternativo dos últimos anos e foi um dos filmes mais comentados e aclamados pela crítica no ano de seu lançamento. Muito foi e ainda é discutido sobre o filme desde 2017. Curiosamente, à primeira vista, o filme – como tantos outros que podem ser encaixados nessa concepção do “mumblecore” – parece não ser dos mais complexos em virtude de como o enredo se desenvolve e de como todos os acontecimentos parecem banais e corriqueiros demais, mas é justamente nesse retrato do cotidiano que o filme realmente brilha e nos faz lembrar o quanto de beleza e intensidade passam despercebidos no meio da rotina.
O filme é um coming of age clássico e traz a trajetória de Christine “Lady Bird” McPherson (Saoirse Ronan), uma adolescente de 17 anos de personalidade forte e grandes desejos de ser muito mais do que a vida lhe parece oferecer. O que ela tem? Uma vida de classe média nos subúrbios de Sacramento (ninguém pensa em Sacramento quando pensa em Califórnia, verdade?), uma educação religiosa não necessariamente opressiva, mas definitivamente pouco estimulante e um convívio familiar típico com uma mãe tão carinhosa quanto sufocante (Laurie Metcalf), um pai amoroso lutando contra depressão, um irmão mais velho e sua cunhada (todos vivendo num espaço aparentemente pequeno). O que ela deseja? Não sei. Ninguém sabe. Nem ela sabe. E aí está a mágica do filme, Lady Bird é um filme sobre os anseios e crises de personalidade de uma adolescente que está buscando seu lugar no mundo, sem saber ao certo onde ou como quer chegar e o que irá fazer a partir daí. Dessa forma, vemos Lady Bird passear por todos os tipos de experiências tristes, patéticas, engraçadas, desconfortáveis e gloriosas que realmente fazem parte do processo natural de formação de identidade. Ela se envolve com diferentes projetos na escola, toma atitudes claramente reprováveis, questiona novos e antigos amigos, desenvolve diferentes relacionamentos amorosos, mente, trabalha, adapta-se, cai e levanta. Até um novo nome (que convenientemente evoca liberdade) ela decide adotar. Tudo isso faz parte de uma longa jornada de descoberta, que, como o filme aparentemente leva a entender, nunca termina.
Em tempos de Time’s Up (movimento comandado por diversas personalidades femininas de grande importância midiática mundial que é participante ativo na luta feminista em nossa época), um filme escrito e dirigido por uma mulher (Greta Gerwig) e com protagonismo feminino (Saoirse Ronan) não poderia encontrar um momento melhor. Com todos seus defeitos, Lady Bird, no fim das contas, não se dobra a ninguém, é extremamente persistente nos seus objetivos e apesar de não saber exatamente quem ela é, fica muito claro o que ela não quer para si. Mesmo em muitos momentos ela parecer egoísta e rude (adolescentes, am I right?), levantar a voz em defesa própria o tempo todo exige coragem.
À parte do quão interessante Lady Bird é como personagem por si só, a relação entre esta com a mãe também é um grande forte do filme. Não é um relacionamento fácil de maneira alguma. Por um lado, Lady Bird parece muito egoísta e toma atitudes que claramente soam como desrespeito ou falta de consideração pelos pais. Por outro lado, Marion (Laurie Metcalf) é, realmente sufocante, parece estar sempre irritada com alguma coisa e mesmo com muito esforço não consegue não depositar um pouco da sobrecarga que vem passando no relacionamento com sua filha. Enfim, relação clássica de pais e filhos. De um lado, uma filha que às vezes pesa a mãe na necessidade de autoafirmação como indivíduo, no outro uma mãe que pesa a mão numa tentativa de controle por estar, também, em processo de adaptação pela chegada iminente da “hora de voar” de sua filha. Simples, banal e corriqueiro amor. O carinho de Lady Bird pela sua família, sua melhor amiga e pela cidade de Sacramento (que em tantos momentos ela se referiu de maneira depreciativa) vão ficando cada vez mais claros conforme ela vai se despedindo da cidade, o que ainda traz um agridoce lembrete de sempre olhar com afeto para o que temos ao nosso lado.

Nota: 10

Lucas Moura