domingo, 23 de março de 2014

A Caverna - a indústria das sombras

A escolha de hoje foi muito especial, porque se trata de um dos meus livros favoritos, do igualmente favorito José Saramago. Dispensa apresentações esse que foi um grande escritor, ensaísta, poeta, dramaturgo, contista, um dos maiores responsáveis pelo destaque da literatura portuguesa. Publicada no ano 2000, A Caverna é apenas uma pincelada no grande mural composto por suas obras.
De modo sucinto, trata-se da vida de um oleiro, Cipriano Algor, sua filha e ajudante Marta e seu genro Marçal. Logo no começo da trama, o Centro, uma espécie de shopping-cidade, para quem Cipriano fornecia as louças, cancela as encomendas, uma vez que os clientes preferem as de plástico, deixando sem emprego a terceira geração de oleiros e deixando Marçal, funcionário do Centro, responsável pela família. A partir daí, temos a tentativa de salvar a olaria, a possibilidade de promoção de Marçal, com a consequente mudança da família para dentro do Centro, e todos os dramas existenciais acerca da relação de pais e filhos, marido e mulher, o ser e sua função, a morte, a vida.
“Então não percebo porque foram precisos tantos rodeios, Porque gosto de conversar consigo como se não fosse meu pai, gosto de fazer de conta, como diz, de que somos simplesmente duas pessoas que se querem muito, pai e filha, que se amam porque o são, mas que igualmente se quereriam com amor de amigos se o não fossem.” 
“A véspera é o que trazemos a cada dia que vamos vivendo, a vida é acarretar vésperas como quem acarreta pedras, quando já não podemos com a carga acabou-se a transportação, o último dia é o único a que não se pode chamar véspera.” 
“Diz-se que cada pessoa é uma ilha, e não é certo, cada pessoa é um silêncio, isso sim, um silêncio, cada uma com o seu silêncio, cada uma com o silêncio que é.”
Pessoas simples, estamos falando de gente que tem apelidos por sobrenomes, que vivem em um lugar pardo do campo, longe da cidade, que tem uma amoreira a dar sombra no meio do quintal e que faz da lama o sustento. Sobre o local onde vivem, vale a pena destacar o trecho que o retrata:
“Diz-se que a paisagem é um estado de alma, que a paisagem de fora a vemos com os olhos de dentro, será porque esses extraordinários órgãos interiores de visão não souberam ver estas fábricas e estes hangares, estes fumos que devoram o céu, estas poeiras tóxicas, estas lamas eternas, estas crostas de fuligem, o lixo de ontem varrido para cima do lixo de todos os dias, o lixo de amanhã varrido para cima do lixo de hoje, aqui seriam suficientes os simples olhos da cara para convencer a mais satisfeita das almas a duvidar da ventura em que supunha-se comprazer-se”
E a beleza do livro jaz principalmente nesse ponto, pois ao mesmo tempo temos as discussões mais elevadas, tudo em tom muito poético, mostrando toda a sabedoria que nasce da humildade.
“Autoritárias, paralisadoras, circulares, às vezes elípticas, as frases de efeito, também jocosamente denominadas pedacinhos de ouro, são uma praga maligna, das piores que têm assolado o mundo. Dizemos aos confusos, Conhece-te a te mesmo, como se conhecer-se a si mesmo não fosse a quinta e mais dificultosa operação da aritméticas humanas, dizemos aos abúlicos, Querer é poder, como se as realidades bestiais do mundo não se divertissem a inverter todos os dias a posição relativa dos verbos, dizemos aos indecisos, Começar pelo princípio, como se esse princípio fosse a ponta sempre visível de um fio mal enrolado que bastasse puxar e ir puxando até chegarmos à outra ponta, a do fim, e como se, entre a primeira e a segunda, tivéssemos tido nas mãos uma linha lisa e contínua em que não havia sido preciso desfazer nós nem desenredar estrangulamentos, coisa improvável de acontecer na vida dos novelos e, se uma outra frase de efeito é permitida, nos novelos da vida (...) Puro engano de inocentes e desprevenidos, o princípio nunca foi a ponta nítida e precisa de uma linha, o princípio é um processo lentíssimo, demorado, que exige tempo e paciência para se perceber em que direção quer ir, que tenteia o caminho como um cego, o princípio é só o princípio, o que fez vale tanto como nada.”
Logo na epígrafe, lemos o que seria um resumo das sensações provocadas pelo livro:
“Que estranhas cenas descreves e que estranhos prisioneiros, São iguais a nós.”
Realmente não dá para não se identificar com esses simples personagens, para não se sensibilizar com seus dramas, para não se angustiar com o crescente papel do Centro a determinar as suas vidas. Afinal, não somos todos reféns de algo/alguém?
Aliás, o Centro funciona como um personagem a parte. Nas palavras do autor, é mais bem definido como “uma cidade dentro da cidade”. Com 48 andares, cresce todos os dias “senão para os lados, para cima, senão para cima, para baixo” possui, além de lojas, tudo de montanha russa a cassino, praias a teatros. E é sufocante a influência exercida por ele sobre a cidade, de modo tão arbitrário e demagógico, é menos um local que uma entidade. Algo que fica perfeitamente claro nesse diálogo entre Cipriano e o gerente de compras do Centro:
“Será o caso de proclamar que o Centro escreve direito por linhas tortas, se alguma vez lhe sucede ter de tirar com uma mão, logo acode a compensar com a outra, Se bem me lembro, isso da linhas tortas e de escrever direito por elas era o que se dizia de Deus, observou Cipriano Algor, Nos tempos de hoje vai dar praticamente no mesmo, não exagerarei nada afirmando que o Centro, como perfeito distribuidor de bens materiais e espirituais que é, acabou por gerar de si mesmo e em si mesmo, por necessidade pura, algo que, ainda que isto possa chocar certas ortodoxias mais sensíveis, participa da natureza do divino.”
Essa associação com a Criação é feita, ainda, com o próprio Cipriano. Depois de perder o contrato das louças, passará a fabricar estatuetas e tal qual a história bíblica, a partir do barro, à sua imagem e semelhança. O mesmo sopro que deu vida às narinas humanas, retiraria o pó dos bonecos saídos do forno e as mesmas mãos que os fizeram, também os destruiria. Uma das passagens mais bonitas se encontra no final, quando também aos bonecos o Centro rejeita e finalmente Marçal é promovido, com a consequente mudança da família ao Centro, Cipriano arruma todos as centenas de bonecos em frente à casa, não só para proteger a esta mas para devolver à terra o que dela foi originado:
“Com a chuva, tornar-se-ão em lama, e depois em pó quando o sol a secar, mas esse é o destino de qualquer um de nós” 
“Então, como se estivesse a um nascimento, segurou entre o polegar e os dedos indicador e médio a cabeça ainda oculta de um boneco e puxou para cima. Calhou ser a enfermeira. Sacudiu-lhe as cinzas do corpo, soprou-lhe na cara, parecia que estava a dar-lhe uma espécie de vida, a passar para ela o hausto dos seus pulmões, o pulsar de seu próprio coração.”
Essa relação de hierarquia e outras mais vão ser sempre retomadas no livro: os bonecos e Cipriano, este com o sub-chefe do departamento de compras, este com o chefe do departamento, mas acima de todos, o Centro. É fácil compreender a angústia do nosso herói, afinal, é uma pessoa cuja função se confunde com o seu próprio ser. Com 74 anos, perde seu papel de provedor e ainda tem de viver sob o teto de quem o subjugou.
“Como tudo na vida, o que deixou de ter serventia deita-se fora, Incluindo as pessoas, Exatamente, incluindo as pessoas, eu próprio serei atirado fora quando já não servir, O senhor é um chefe, Sou um chefe, de facto, mas só para aqueles que estão abaixo de mim, acima há outros juízes, O Centro não é um tribunal, Engana-se, é um tribunal, e não conheço outro mais implacável, Na verdade, senhor, não sei porque gasta seu precioso tempo a falar destes assuntos com um oleiro sem importância, Observo-lhe que está a repetir palavras que ouviu de mim ontem, Creio recordar que sim, mais ou menos, A razão é que há coisas que só podem ser ditas para baixo, E eu estou em baixo, Não fui eu quem lá o pôs, mas está, Ao menos  ainda tenho essa utilidade, mas se a sua carreira progredir, como certamente sucederá, muitos mais irão ficar abaixo de si, Se tal acontecer, o senhor Cipriano Algor, para mim, tornar-se-á invisível, Como o senhor disse há pouco, assim é a vida”
Dois personagens ainda merecem destaque, qual sejam Isaura Estudiosa, uma vizinha viúva com quem Cipriano se envolverá emocionalmente da maneira mais terna e profunda, e o cão Achado. Menos um cão que um humano, a sensibilidade desse animal transcende sua natureza. É interessante ver por sua perspectiva como a natureza humana pode ser confusa, incoerente ou pelo menos complicada.
“Decerto por estar no tenro verdor da mocidade, Achado não teve ainda tempo de adquirir opiniões formadas, claras e definitivas sobre a necessidade e o significado das lágrimas no ser humano, no entanto, considerando que esses humores líquidos persistem em manifestar-se no estranho caldo de sentimento, razão e crueldade de que o dito ser humano é feito, pensou que talvez não fosse desacerto grave chegar-se à chorosa dona e pousar-lhe docemente a cabeça nos joelhos. Um cão mais idoso, e por essa razão, supondo que a idade está obrigada a suportar culpas duplicadas, mais cínico do que o cinismo que não pode evitar ter, comentaria com sarcasmo o afectuoso gesto, mas isso deveria ser porque o vazio da velhice o teria feito esquecer-se de que, em assuntos do coração e do sentir, sempre o demasiado foi melhor que o diminuído. (..). A partir deste dia, Marta vai querer tanto ao cão Achado como sabemos que já lhe quer Cipriano.”
Já morando no Centro, vai-se desenrolar o estranho enredo em que se baseará o título do livro, com inspiração no Mito da Caverna, de Platão. Em um mundo de vitrines, envolver-se-ão com o Centro a tão ponto de confundir a realidade com seu reflexo: respirando apenas o ar do sistema refrigeração, frequentando praias artificiais, chuva apenas a gerada por simuladores. Sem spoillers, o que acontecerá obrigará a família Algor a repensar suas vidas e nós, as nossas. Apenas um teaser:
“Que foi que viu, quem são essas pessoas, Essas pessoas somos nós, disse Cipriano Algor, Que quer dizer, Que somos nós, eu, tu, o Marçal, o Centro todo, provavelmente o mundo”
Quem não é familiarizado com a escrita de Saramago, deve estar a estranhar um pouco os trechos. Sem pontos, travessões, os diálogos ocorrem em linha contínua, sendo marcados pela presença de uma primeira letra maiúscula. Longe de ser confuso, torna o texto fluido; isso facilitado pelo encadeamento perfeito de ideias. O livro todo ocorre como a melhor conversa que você jamais vai travar.
Primeiro livro depois de vencer o Nobel de Literatura de 1998, é o ideal para quem procura um enredo com forte cunho filosófico, a discutir a humanidade, as relações sociais, o consumo, a economia, a espiritualidade. Nas palavras do autor, não tenha pressa, mas não perca tempo.

Nota: 10

Marcelle Vieira Freire

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