Entre o fim dos anos 60 e toda a década de 70, instalou-se em
Hollywood um movimento cinematográfico liderado por jovens atores, diretores e
roteiristas, inspirados, sobretudo, nas diretrizes da nouvelle vague e afoitos
por trazer uma forma nova de criação para o cinema americano, utilizando-se da
exposição de temas mais sérios, violentos e sexuais, muitas vezes ultrapassando
limites, quebrando noções de falsa moralidade, elevando um mundo “underground”
de pessoas excluídas da sociedade e apresentando trabalhos tão frios quanto
cruéis e realistas. O primeiro grande marco dessa geração foi a viagem
alucinógena de Peter Fonda, Dennis Hooper e Jack Nicholson, no road movie
Sem destino (
Easy Rider, 1969) que abriu definitivamente as portas da
contra-cultura, dos anti-heróis e do cinema autoral para a sétima arte
americana. Durante os anos que se passaram, quase toda a produção
cinematográfica estava diretamente relacionada a esse movimento que atingia uma
grande margem de espectadores, em sua maioria jovens, ansiosos por verem uma
digna representação de sua geração nas telas. No entanto, todo carnaval tem seu
fim.
Aos poucos, a Nova Hollywood (como eram chamadas) foi perdendo força
(lê-se dinheiro) quando o público em geral passou a se cansar da excessiva
densidade psicológica a qual ficavam expostos. Dessa forma, não havia mais
interesse por parte das grandes produtoras em financiar filmes tão viscerais e,
aos poucos, o movimento foi perdendo a força. Diria que uma grande marca desse
declínio foi a derrota d
Apocalypse Now
para
Kramer vs. Kramer, no Oscar de
1979. Era o início do fim. Antes que o movimento em si terminasse (mantendo, no
entanto, seu legado), Martin Scorsese (um dos principais diretores desse
período) trouxe ao mundo este que é um de seus melhores trabalhos, um dos
melhores filmes dos anos 80 e uma grande homenagem ao cinema de toda essa
geração:
Touro indomável (
Raging bull,
1981).
Touro indomável, em termos de roteiro, é
bem simples. É a vida de Jake La Motta (Robert De Niro), o “touro do Bronx”. La
Motta é uma pessoa real, e foi um grande lutador de boxe na década de 40. O
filme vai explorar, então, todos os traços de sua confusa personalidade, uma
pessoa extremamente violenta, agressiva, intolerante e confusa, incapaz de
manter uma relação estável com alguém, egocêntrico demais para perceber que o
mundo
não gira apenas em torno de si e que não sabe se comunicar ou muito
menos expressar seus sentimentos confusos, conturbados e, às vezes,
indecifráveis, de outra forma que não seja através dos punhos. A inconstância e
a mentalidade violenta o tornam quase insuportável e o afastam até mesmo de seu
irmão, Joey (Joe Pesci), que também foi seu empresário durante muitos anos e
que o fez chegar à posição de destaque no boxe mundial, e de sua mulher, Vickie
(Cathy Moriarty, com uma beleza clássica), por quem sente um ciúme doentio
(fundamentado pela sua incapacidade sexual). Dessa forma, La Motta segue pelo
filme como se estivesse subindo e descendo uma ladeira: uma grande subida
inicial, encontrando sua futura esposa, firmando-se no boxe, assumindo uma
rivalidade com Sugar Ray Robinson (outro grande lutador da época) e alcançando
o título mundial dos pesos-médios e uma descida brusca, onde o homem jamais
derrubado nos ringues termina como um gordo velho solitário e ignorante,
vendendo as jóias de seu cinturão para pagar advogados, esmurrando paredes
frias de uma cela minúscula e apresentando-se como comediante de quinta em
bares quaisquer pela cidade.
Scorsese nos mostra, então, um conto tão belo quanto marcante.
Utiliza-se para isso de um protagonista que é um típico anti-herói (figura
comum nos filmes da época. Esse papo de mocinho e vilão não rola), que é tão
distante o possível de Rocky Balboa (em alta na época). Afinal, quem é Jake La
Motta? Um completo fracassado. Um homem cuja ignorância o tornou incapaz de
aprender qualquer coisa com tudo que ocorreu ao longo de sua vida e que se
permite terminar seus dias como um qualquer, sendo que podia ter sido alguém (é
feita uma citação direta ao personagem de Marlon Brando em
Sindicato de ladrões que levanta o mesmo posicionamento). De fato,
ele não demonstra pontos positivos a seu respeito e muito menos qualquer
explicação para ele ser desse jeito. E mesmo assim, La Motta é uma das melhores
personagens da história do cinema. É incompreensível e fascinante ao mesmo
tempo, tornando impossível uma não aproximação curiosa por parte de quem o
assiste a sua figura. Grande parte dessa estranha empatia vem, logicamente, do
trabalho de mestre de Robert De Niro. Um exemplo clássico de atuação do método
(escola de atuação em que o ator não deve interpretar o personagem e sim
vivê-lo) há uma entrega completa à personagem, que fica bem evidente na
profunda transformação física pela qual o ator passa ao longo do filme, desde o
La Motta musculoso no auge de sua forma física ao gordo decadente. De Niro
ganhou o seu
Oscar de melhor ator por este filme, numa interpretação que é, no
mínimo, inesquecível.
Para maximizar
o clima do filme, o longa é filmado em um belo preto e branco, que o torna
muito mais sóbrio e triste (também apropriado às décadas de 40 e 50 nas quais o
filme passa) e que permite que a explosão de violência, sangue e suor que
acontece a todo o
momento em surtos constantes e tão equilibrados como uma dança se
torne mais poética sem deixar de ser feroz. Nos ringues, a fotografia permite
que os momentos de glória e perda de La Motta sejam opostos. Nas vitórias, é
tudo claro e nítido. Nas derrotas, o clima do ringue é quase infernal, com
imagens distorcidas remetendo a calor e um ambiente esfumaçado e cheio de
sangue. A edição dita o ritmo que pode ser lento ou ágil, dependendo da
circunstância e da intensidade do momento, contrapondo momentos quase líricos a
momentos de selvageria.
Sendo assim,
Touro indomável
exibe a força máxima do cinema. O auge de um diretor e de seu protagonista, um
dos melhores (talvez o melhor) filme dos anos 80, uma das mais notáveis
produções artísticas do cinema e um conto moderno que já nasceu clássico. Como
o movimento do qual
Touro indomável
faz parte já estava enfraquecido, o jamais derrubado Touro do Bronx acabou
sendo abatido, injustamente, pelo belíssimo
Gente
como a gente no Oscar de 1981, protagonizando um dos casos mais clássicos e
evidentes de injustiça do Oscar, que tirou praticamente tudo de suas mãos,
incluindo ator coadjuvante (Joe Pesci foi indicado, mas perdeu para Timothy
Hutton), melhor filme e principalmente melhor diretor. Por mais que Scorsese
tenha recebido o prêmio depois (mais de 20 anos depois) por
Os infiltrados, é evidente e inegável
que seu melhor desempenho tenha sido aqui.
Lucas Moura