sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O Estrangeiro – Uma História do Absurdo

 Para o post de hoje escolhi falar sobre O Estrangeiro, um dos livros mais marcantes da literatura mundial. Obra do escritor, filósofo, dramaturgo, ensaísta Albert Camus, pied-noir da Argélia (onde, aliás, a história se passa) cuja história de vida, marcada pela fome, pela guerra, pela desigualdade, pelas perdas, muito influenciou seus escritos, dentre os quais O Estrangeiro não é exceção. Esse livro trata do absurdo, com apenas 100 páginas, nenhuma palavra é desperdiçada e cada frase visa despertar algum sentimento, alguma reflexão no leitor.
Do francês L’étranger que também pode significar ‘o estranho’, é realmente um estranhamento, uma incompreensão a primeira sensação experimentada logo ao começar o livro e que nos acompanhará ao longo da história. Não é para menos, em sua primeira frase Meursault, narrador personagem e funcionário de escritório, fala da morte de sua mãe: “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem”. As palavras seguintes são totalmente indiferentes ao fato, ele vai ao enterro e recebe os pêsames como algo a ser feito. Descreve o ocorrido assim como descreve o café tomado no velório, ou o calor daquele dia. Não obstante isso em nenhum momento sugere-se que ele não gostava da mãe, não se trata disso. Ele é simplesmente neutro com relação aos acontecimentos da vida, como um estrangeiro, distante do mundo.
Já no dia seguinte, não fossem as perguntas dos conhecidos sobre como ele estava, seria como se nada tivesse acontecido. Ele vai tomar um banho de mar pela manhã, à noite vai ao cinema com uma antiga datilógrafa Marie Cardona assistir a uma comédia, dormem juntos. É interessante como apenas desejos primitivos como o cigarro, o sexo, o clima, parecem mover o protagonista.
Meursault por vezes parece enfadado, principalmente quando descreve detalhes cotidianos de sua vida, sempre com frases curtas que apenas parecem querer acentuar a indiferença do narrador. Não sabemos se é uma apatia generalizada ou uma lassidão aquilo que consome nosso herói, ou os dois talvez. Em certo momento admite a perda do hábito de interrogar-se e talvez essa falta de reflexão o faça agir de forma quase impulsiva. Por vezes nosso protagonista parece aceitar simplesmente tudo que a vida apresenta em seu caminho, sem pensar, sem refletir muito, de um jeito desinteressado, como quem responde com ‘tanto faz’ a uma pergunta. Aliás, essa é a resposta retribuída por ele quando Marie o pede em casamento e quando seu chefe oferece uma oportunidade de crescer no emprego.
Certo dia quando está caminhando na praia em um dia muito quente, “o mesmo sol do dia que enterrara mamãe”, Meursault encontra um árabe inimigo do seu vizinho e quando este empunha uma faca, como precaução, é morto por cinco tiros, sem compunção:
"Toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça”.
Na delegacia, quando perguntado por que fez isso, respondeu: por causa do sol. Justificativa compatível com uma característica descrita pelo próprio protagonista cujos impulsos físicos perturbavam os sentimentos. Nesse sentido, o calor o impediu de chorar no enterro da mãe, o sol incandescente o fez atirar contra o árabe.
A partir daí, em uma crítica ao sistema judicial, seu crime se torna secundário. Durante seu julgamento não sabemos se a questão central é o acusado ou o seu crime, e seu comportamento no enterro da mãe, taxado de insensível, é trazido à tona e discutido à exaustão. Perscrutar a personalidade do protagonista se torna essencial para o veredicto. Infelizmente, a impressão transmitida por Meursault, descrito como “um coração cego”, “um homem sem alma” aliada à sua incapacidade de se arrepender de qualquer coisa irão condená-lo à morte por decapitação.
Os dias de Meursault preso, antes de seu trágico fim, são marcados no começo por sua indiferença habitual, por seu modo de pensar marcadamente descritivo e não reflexivo. Depois, todavia, surgem momentos de esclarecimento, com reflexões quase poéticas acerca de si ou do tempo como nos trechos:
"Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia poderia sem dificuldade passar cem anos em uma prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar. De certo modo, isso era uma vantagem."
"Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser, ao mesmo tempo, curtos e longos. Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos que acabavam por se sobrepor uns aos outros. E nisso perdiam o nome. As palavras ontem ou amanha eram as únicas que conservavam um sentido para mim."
Até mostras de sentimentos aparecem, como a alegria eufórica apresentada quando imaginara seu recurso sendo aceito. Ou como quando tem um ataque de fúria e tenta atacar o padre quando este diz que rezará por ele.
Seu fim é como um golpe colérico contra o mundo tão indiferente quanto Meursault, o qual conclui que aquele não se importa com quem morre, afinal, a humanidade ainda habita-o, e continua girando inexoravelmente no seu ritmo.
Como podemos ver o enredo é simples, nos faz perceber que a primazia de um livro está menos na sua história do que na mensagem remanescente após sua leitura. Livro denso, cheio de nuances, um poço cuja água se bebe, mas sempre haverá mais para ser sorvida.

Marcelle Vieira Freire

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