domingo, 31 de março de 2013

2001: uma Odisseia no Espaço - a vida, o universo e tudo mais

É inesquecível. Nos três minutos iniciais se ouve apenas um leve zumbido, que junto à tela toda escura criam expectativa, e são interrompidos pelo início de Assim falava Zaratustra de Richard Strauss, enquanto aparecem alinhados a Lua, a Terra e por fim o Sol - quando, num "ápice" da música, surge o título instigante.
2001, uma odisseia no espaço (2001: a space odissey, 1968) foi idealizado por Stanley Kubrick para ser mais que um filme de ficção científica, e junto ao escritor e brilhante cientista Arthur C. Clarke, promoveu uma verdadeira divisão de águas no gênero. A história é baseada no conto A Sentinela, de Clarke, que foi adaptado pelos dois, que trabalharam juntos e num certo ponto se separaram; Kubrick foi dirigir o filme e Clarke foi terminar de transformar o conto em livro, que foi lançado pouco antes do filme. Um tipo de parceria que possivelmente nunca mais foi repetido, mas que aqui deu muito certo.
A primeira parte, "A Aurora do homem", também conhecida como a cena dos macacos que dura um ano, mostra um grupo de primatas humanoides num cenário árido e hostil, sendo predados por feras e se alimentando de animais em decomposição. Num certo ponto, outro grupo de primatas os expulsa da poça d'água às margens da qual eles vivem, e eles têm de se refugiar em cavernas. O aparecimento de um monólito negro parece ser a chave para um salto evolucionário que transforma os primatas coletores e necrófagos em caçadores e assassinos a partir da descoberta de como usar um osso como ferramenta e arma. No fim da primeira parte, um dos macacos joga um osso pra cima, num dos melhores cortes de cena que já vi, e  o osso se transforma num satélite.
Entre aprendermos a caçar e matar e viajarmos tranquilamente pelo espaço, há apenas um piscar de olhos. Ou seja, toda a história humana se resume a matar e destruir?
Abrindo a segunda parte, satélites e naves ao redor da Terra ao som de Danúbio Azul, de Johann Strauss - sim, a valsa das debutantes. Se essa música já é grudenta, imagine pra quem viu o filme. Isso porque os satélites parecem valsar ao som da música, e Kubrick tinha o dom de tornar algumas músicas mais inesquecíveis do que já são, vide a 9ª Sinfonia. Enfim, estamos agora numa estação espacial internacional, tripulada por cientistas de varias nacionalidades (com direito a referências à Guerra Fria), e que manda para a Lua uma missão para investigar um monólito negro descoberto em escavações, fonte de uma radiação que se dirige a Júpiter. O monólito é o mesmo encontrado pelos primatas milhões de anos atrás, e assim como na Terra pré-histórica, a cena lunar mostra o sol visto a partir dele, fazendo alusão a representações pagãs, e desencadeando fatos importantes na história.
Outro corte, dessa vez para a Missão Júpiter, dezoito meses depois. A nave Discovery One traz uma tripulação de cinco passageiros, sendo que três estão hibernando, e os outros dois , dr David Bowman e dr Frank Poole, que dividem o comando da missão com o computador HAL 9000, da família de supercomputadores mais eficiente que existe. Aí temos o fato mais interessante do filme: Hal, que é dotado de personalidade quase humana, se volta contra a tripulação e tenta matar todos - se ele consegue ou não, assista para descobrir. O que temos aqui é uma forte crítica ao avanço tecnológico: um computador que tem mais sentimentos que humanos (pois os astronautas aparecem sempre apáticos) e cuja incapacidade de falhar lhe permite subjugar o homem. A própria sigla HAL é referência à empresa IBM (H vem antes de I, A vem antes de B...), na época uma gigante sem rivais em seu ramo. Hal aparece como o Ciclope da Odisseia (sim, a "odisseia" do título remete à Odisseia de Homero), tão poderoso, tão invulnerável, e determinado a acabar com os humanos que estão em seu caminho; e da mesma forma que na história grega, é um obstáculo para a saga que o homem deve seguir.
Indo pra parte final... aí depende da imaginação de cada um, ou da pedância de cada um, ou da erva que cada um puxou. Kubrick lança mão do que havia de melhor em efeitos especiais, e o que não era bom o suficiente, ele cria melhor, para fazer o espectador viajar pelo espaço, nascimento de galáxias, canyons, até chegar num quarto com decoração Luis XV, em que a vida presente se confronta com a frágil e decadente vida da idade avançada e com a frágil e promissora vida fetal, no belíssimo desfecho em que aparece um feto humano, com olhinhos brilhantes enquanto contempla a Terra, representando a inocência da infância (e seria o feto, emvolto em seu círculo luminoso, um outro mundo admirando o nosso?) - confuso? É assim mesmo.
O próprio Arthur Clarke afirmou que se alguém assistir ao filme, e logo na primeira vez entendesse tudo, ele e Kubrick teriam falhado em sua missão. Em uma entrevista, o diretor afirmou que sua intenção foi criar uma experiência visual, para atingir o espectador  em seus níveis mais profundos de consciência, e dava toda liberdade de interpretação a quem assistir. O pior que é verdade. 2001 é muito mais ver e sentir que compreender. O filme é belíssimo visualmente do começo ao fim; a trilha sonora também é ótima e casa perfeitamente com cada momento. Certo que a subjetividade chega a parecer excessiva e há problemas na narrativa - aliás, há narrativa? A única certeza é que somos levados junto às viagens da cabeça de um diretor que não se preocupou em facilitar a vida de quem ia sentar pra ver seu filme e produziu uma obra autoral, no popular "tá gostando, beleza, se não tá, o filme é meu".
O fato é que 2001 comprova a frase de Orson Welles que diz que "o cinema não tem fronteiras nem limites, é um fluxo constante de sonho". Nas palavras de Isabela Boscov, "não existe filme capaz de mostrar melhor do que o cinema é capaz, de que a imaginação humana é capaz, do que a arte de um diretor realmente único é capaz". É complexo? É. Cansativo, confuso? Sem dúvidas. Mas o que 2001 fez vai além de inovações na ficção científica e atinge todo o cinema no que diz respeito ao que pode ser transmitido nas telonas, como os sentimentos primitivos da nossa pequenez diante do universo e do nosso desejo de descobrir o que há para dentro ou para fora de nossa existência. Através de toda a abstração do filme, a representação da rapsódia humana no universo.
Só pra terminar: indicado a quatro Oscar - direção, roteiro, direção de arte e efeitos especiais visuais, vencendo apenas na última (único Oscar de Kubrick) e atualmente na sexta posição da lista de melhores filmes da Sight and Sound.

Nota: 10

Leia também: 
Dr Fantástico
Kubrick e Scorsese
Lolita

Luís F. Passos

quinta-feira, 28 de março de 2013

O Apanhador no Campo de Centeio - Quando um corpo encontra um corpo

Trago para vocês hoje um clássico da literatura mundial, escrito pelo americano J. D. Salinger, em 1951: O Apanhador no Campo de Centeio. Não é sem méritos a presença desse romance nas listas dos 100 Melhores Livros da Modern Libray e do Times. Ele é mais um daqueles livros cuja qualidade está muito menos no enredo em si do que na forma como foi narrado, pois se formos ver ao pé a letra, é apenas um livro sobre um adolescente que é o arquétipo do jovem em crise. E com essa intenção já nasceram vários fiascos da literatura infanto-juvenil dos quais prefiro não citar nomes. Mas não o Apanhador no Campo de Centeio, ao qual nem classificaria como infanto-juvenil, afinal, é um livro muito arguto e conspícuo, para ser lido em qualquer idade.
O livro conta a história de Holden Caulfield, quando ele tinha 16 anos. Vindo de uma família abastada, o enredo se passa no curto espaço de tempo entre sua expulsão de mais um desses internatos de luxo e a sua volta dele para casa. Uma vez que ele mesmo é o narrador, contando a história um ano depois, acompanharemos sua idiossincrasia, todos seus pensamentos, todas suas opiniões, todo seu modo peculiar de ver a vida.
E Holden é realmente muito interessante. Parafraseando Sal Paradise em On The Road, ele é uma dessas pessoas loucas; loucas para viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, que desejam tudo ao mesmo tempo, que bocejam diante do comum e ardem. É um jovem melindroso, atônito e confuso. Não é difícil, contudo, entender a origem de sua angústia, da sua depressão. Na verdade ele se sentia muito só. Nos colégios pelos quais passou apenas conheceu os mesmos tipos de pessoas esnobes, sem caráter, sem conteúdo.
“Você devia ir a um colégio de rapazes, só para ver. Experimenta só. Estão entupidos de cretinos, e você só faz estudar bastante para poder um dia comprar uma droga de um cadilaque, e você é obrigado a fingir que fica chateado se o time de futebol perder, e só faz falar de garotas e bebida e sexo o dia inteiro, e todo mundo forma uns grupinhos nojentos.”
Ao longo do livro, perdem-se as contas de quantas vezes ele teve vontade de telefonar para alguém, ou de quantos desconhecidos ele convidou para tomar um drink só para ter com quem conversar, mesmo pessoas que ele não gostava muito. Em outro momento, Holden chegou a expressar-se sobre isso de maneira mais confusa, porém fica patente sua inadequação:
“Você alguma vez na sua vida já se sentiu cheio de tudo? Quer dizer, alguma vez na vida já ficou com medo de que tudo vai dar errado, a menos que você faça alguma coisa? Bem, eu odeio a escola. Poxa, como detesto o troço. E não é só isso. É tudo. Detesto viver em Nova York e tudo. Táxis, ônibus da Avenida Madison, com os motoristas gritando sempre para a gente sair pela porta de trás, e ser apresentado a uns cretinos que chamam os Lunts de anjos, e subir e descer em elevadores quando a gente só quer sair, e os sujeitos ajustando as roupas da gente nas lojas. (...) Os carros, por exemplo. A maioria das pessoas são todas malucas por carros. Ficam preocupadas com um arranhãozinho neles, e estão sempre falando quantos quilômetros fazem com um litro de gasolina e, mal acabam de comprar um carro novo estão pensando em trocar por outro mais novo ainda.”
Aliás, sua relação com outras pessoas é muito interessante. Ele é capaz de ir oscilar entre gostar muito e gostar pouco de alguém em um minuto, de uma maneira muito sincera. Ele foi capaz de propor casamento para uma garota de quem nem gostava, convidá-la, em seguida, para fugir com ele para outra cidade e levar uma vida no campo, porque, naquele momento, era seu real desejo e, no minuto seguinte, após sua recusa, foi capaz de dizer a ela que ela era “um pé no saco”, porque naquele momento era o que realmente pensava. O auge dessa relação ambígua com os outros personagens do livro é no final, quando diz:
“A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo.”
Além da solidão, sua depressão fundamenta-se também na falta de perspectiva de sua vida.
“Tem gente que passa dias procurando alguma coisa que perdeu. Eu acho que nunca tive nada que me importaria muito de perder.”
Um de seus professores, Antonioli, observou perfeitamente o problema e o admoestou:
“Acho que um desses dias você vai ter que decidir para onde quer ir. E vai ter que começar a ir para lá. Tenho a impressão de que você está caminhando para alguma espécie de queda... uma queda tremenda. O homem que cai não consegue nem mesmo ouvir ou sentir o baque do seu corpo no fundo. Apenas cai e cai. A coisa toda se aplica aos homens que, num momento ou outro de suas vidas, procuram alguma coisa que seu próprio meio não lhes poderia proporcionar. Por isso abandonam a busca antes mesmo de começa-la de verdade.”
Isso também fica claro quando sua irmã Phoebe, de dez anos, pergunta-o sobre o que gostaria de fazer da vida, e ele responde que se lembra do poema de Robert Burns, Coming Through The Rye, de onde, aliás, vem o título da obra, e diz ter vontade de agarrar crianças prestes a cair no abismo (tentativa de preservar suas inocências, talvez?). 
Poderia falar também dos outros personagens nesse livro, no entanto, eles são apenas adjuvantes que vão nos ajudar a entender melhor o nosso herói. Ajudam-nos a entender porque reprovou em quase todas as matérias e foi expulso pela quarta vez de um colégio; porque saiu antes da data prevista para se refugiar em um hotel barato; porque vagou por bares, pelas ruas; porque saiu do tal hotel e foi para sua própria casa às escondidas visitar sua irmã mais nova, partindo em seguida para a casa de um professor; porque saiu de lá às pressas e dormiu em uma estação de metrô; porque teve um colapso; porque retornou a casa.
É um livro realmente tocante, de muita sensibilidade, muito visceral, simplesmente não se lê sem se despertar uma reflexão. Devo alertar, todavia, para o estado de espírito adequado antes de ler tal obra. Explico. Quando o li, o fiz pensado em um grande clássico da literatura, de um autor com um nome de peso, em um livro eminente, por isso me frustrei um pouco. E esse é o erro. Deve-se lê-lo com a mente aberta. Incomodou-me a linguagem demasiadamente informal, com muitas gírias anacrônicas, mas oras, o narrador é um adolescente! Deve-se relevar isso e perceber a real intenção por trás de tal linguagem. Foi a primeira obra sobre a adolescência e ainda sob a forma de uma crônica tão acurada. Essa fase era ignorada até então, vista apenas como uma transição para idade adulta, e foi fidedignamente descrita não só por retratar a maneira de pensar e agir como por retratar a maneira de falar também. Nem preciso dizer o seu sucesso estrondoso na época fundamenta-se na identificação em massa de todos os jovens. E não tem como não se ver no nosso protagonista, em maior ou menor grau. O que posso dizer é que se nas palavras de Holden um bom livro é aquele que quando a gente acaba de ler fica querendo ser um grande amigo do autor, para se poder telefonar para ele toda vez que tiver vontade. O Apanhador No Campo De Centeio é obra para te deixar com vontade convidar Salinger para um café.

Curiosidades:
O assassino de John Lennon, Mark David Chapman, carregava este livro consigo no dia em que cometeu o crime. Segundo testemunho do próprio Chapman, estava lendo o "Apanhador no Campo de Centeios", minutos antes de tentar o suicídio e da obra teria tirado inspiração para matar John.
O atirador que tentou matar Ronald Reagan em 30 de abril de 1981, afirmou a mesma coisa, ou seja, que teria tirado do livro a inspiração para matar o presidente Reagan. Não obstante, o assassino de Rebecca Schaeffer, Roberto John Bardo, carregava consigo o livro quando a matou.
Depois de vender 15 milhões de exemplares e virar uma celebridade mundial, Salinger - notoriamente tímido e agressivamente modesto em relação a seu talento - primeiro isolou-se em uma casa no topo de uma montanha, em uma cidadezinha de mil habitantes. Depois foi diminuindo o ritmo de produção e afinal cortou qualquer contato com a mídia. Não concede entrevistas, não se deixa fotografar e nunca permitiu que nenhum dos seus livros fosse adaptado para o cinema (assim como o próprio Holden Caulfield, Salinger odeia cinema).

Leia também: A montanha mágica
  
Marcelle Vieira Freire

terça-feira, 26 de março de 2013

Keira Knightley


A aniversariante ilustre de hoje é a atriz inglesa Keira Knightley (26/03/1985). Keira está completando apenas 28 anos de idade, mas já apresenta um currículo capaz de causar inveja a muitos atores que encontram-se em atividade já há muito tempo. Começou na carreira de atriz ainda muito jovem, fazendo pequenas participações em programas televisivos ou em filmes, sem jamais chamar muita atenção. Começou a ganhar maior credibilidade no início dos anos 2000 quando emplacou sucessos seguidos que incluíam filmes como Simplesmente amor (Love actually, 2002) e Piratas do caribe: a maldição do Pérola Negra (Pirates of the Caribean: the curse of the Black Pearl, 2003), sendo este o capítulo inicial de uma franquia de enorme sucesso dos anos 2000 em que Keira contracenava diretamente com nomes altamente estabelecidos na indústria do cinema, como Johnny Depp, Orlando Bloom e Geoffrey Rush. 
A consagração definitiva, no entanto, veio em 2005, quando Keira encarnou com graça, sutileza e muita força uma das personagens femininas mais icônicas da literatura mundial: Elizabeth Bennet, protagonista do universalmente louvado Orgulho e Preconceito, de Jane Austen. Se for para escolher o papel da carreira de Keira Knightley, é este – pelo menos por enquanto. Aqui ela apresenta-se melhor do que nunca e sua interpretação tornou-a efetivamente cativante para público e para a crítica. Na pele de Bennet, Keira recebeu indicações a importantes prêmios cinematográficos como o Globo de Ouro e o Oscar – na época, tinha apenas 20 anos de idade, tornando-se até hoje uma das mais jovens indicadas na categoria.
Após a explosão que foi Orgulho e Preconceito, Keira não deixou a qualidade de seu trabalho cair e muito menos diminuiu o ritmo. Emplacou sucessos atrás dos outros em produções variadas – esbanjando versatilidade – que variavam da ação cômica das continuações de Piratas do Caribe a filmes mais intimistas como Não me abandone jamais (Never let me go, 2010). Dessa nova fase, um grande destaque é sua participação como uma das personagens centrais da complexa e trágica trama de Desejo e Reparação (Atonement, 2007), filme aclamado por público e crítica.
Famosa por desenvolver bem papéis em filmes de época – bem evidenciados em longas como A duquesa (The duchess, 2008) e Anna Karenina (2012) – Keira é, para mim, uma das melhores atrizes desta nova geração. Jovem e sempre carismática, é sempre interessante acompanhá-la em cena. Uma atriz que para seus 28 anos já fez muita coisa, mas que pelo que já sabemos é capaz de muito mais. 

Sagaranando recomenda:
Orgulho e preconceito
Desejo e reparação
Não me abandone jamais

Lucas Moura

Perfume de mulher - viva a vida intensamente

Pequeno clássico dos anos 90 e filme que parece perfeito para a tv aberta, Perfume de mulher traz o gigante do cinema Al Pacino na pele do tenente-coronel reformado Frank Slade, militar condecorado que perdeu a visão numa de suas muitas farras e teve de morar com a família de uma sobrinha, se tornando um homem amargo e solitário.
O filme tem início na tradicionalíssima escola Baird, onde só entram herdeiros de grandes fortunas ou alunos suficientemente brilhantes para merecer uma bolsa - que é o caso de Charlie Simms (Chris O'Donnell). Às vésperas de um feriado, Charlie é testemunha de uma brincadeira de mau gosto de seus colegas contra o sr. Trask, e por ser bolsista, passa a ser pressionado para delatar os culpados. O garoto se recusa, e o diretor chega a lhe oferecer uma vaga em Havard, que também é recusada. Diante da situação, a escola parecia disposta a perdoar George, colega de Charlie que também viu os culpados, e punir o único pobre da história.
As histórias de Frank e Charlie se cruzam quando o garoto descobre um anúncio de emprego para o feriado, que era o de cuidar do coronel enquanto sua família viajava. Assim que seus sobrinhos vão embora, Frank arruma as malas e arrasta Charlie para Nova York, onde pretende desfrutar do melhor que a vida e o dinheiro podem oferecer e no fim se matar.
Inicialmente Charlie fica apavorado com a ideia, mas vai aproveitando as coisas mostradas pelo coronel e os dois vão se tornando amigos. À medida em que Frank conhece melhor Charlie e descobre seus problemas na escola, passa a perceber que nem tudo na vida está perdido e que, através do garoto, pode se sentir jovem e útil novamente.
Apesar de ser um ótimo filme, Perfume de mulher (Scent of a woman, 1992) não vai muito além disso. A história é muito bacana, muito bonita, o filme tem bons diálogos, é um bocado chamoso, mas não tem muita profundidade e vai em direção ao típico final feliz de filmes americanos leves. Não que isso o diminua - ele é um desses filmes pra se ver uma vez e se encantar. Como esquecer da clássica cena do tango, que demorou mais de três semanas para ser gravada? Ou esquecer de um cego dirigindo uma Ferrari a 140 km/h por Nova York ou mesmo do discurso proferido por Frank no Baird?
Mas claro, o grande mérito aqui é de Al Pacino. Depois de vários trabalhos excelentes que lhe renderam indicações ao Oscar, como em O poderoso chefão, O poderoso chefão pt 2 e Um dia de cão, finalmente ganhou sua estatueta pela incrível atuação como o coronel cego fascinado por perfumes, mulheres e bebida. Apesar da dureza e antipatia iniciais, o Frank de Pacino é muito carismático e inimaginável de ser feito por outro ator que não ele.

Luís F. Passos

sexta-feira, 22 de março de 2013

O Mestre - crer ou não crer, eis a questão

 Lembro perfeitamente que no começo do ano passado O mestre (The master, 2012) era tido como um dos grandes favoritos a receber várias indicações ao Oscar e até mesmo um dos principais nomes na corrida pelo prêmio principal da noite. Com o decorrer do ano, o filme foi perdendo cada vez mais e mais força (por razões que não entendo), sobretudo com relação a seu diretor, Paul Thomas Anderson, que sequer foi nomeado. Paul Thomas Anderson, ou PTA para os mais íntimos, é definitivamente um dos melhores diretores do cinema americano em atividade. Com uma filmografia modesta em tamanho, mas absurdamente gigante em qualidade, Paul Thomas Anderson tem cadeira cativa na alma dos cinéfilos. De seu primeiro filme lá pela metade dos anos 90 para o presente com O mestre, seu trabalho mostrou-se cada vez mais sério e autoral. O diretor criou um estilo único, autoral e totalmente particular de contar histórias a partir de seu ponto de vista interessante, visualmente fascinante, peculiar e desconfortavelmente instigante. Gosto muito do Boogie nights (1997) e sou totalmente fã de Sangue negro (2007). Recentemente, fui ao cinema assistir a seu novo trabalho, O mestre, e sai da sessão tendo no mínimo uma certeza: Paul Thomas Anderson é mesmo um gênio. 
O mestre conta a história de Freddie Quell (Joaquin Phoenix), um marinheiro americano recém saído da Segunda Guerra Mundial. Um homem altamente desequilibrado e completamente fora de sintonia com o mundo a sua volta e com qualquer pessoa ao seu redor. Sua falta de conexão e sua impossibilidade de encaixar-se no convívio interpessoal garantido por regras e padrões de moralidade e bom senso sociais o torna uma pessoa impossível de se lidar e totalmente deslocada de tudo. Ele não faz parte de nada, é um estranho vagando pelo mundo. Vive de andarilho entre pequenas confusões, ataques de histeria e bebedeiras memoráveis (todas fundamentadas numa bebida que ele mesmo fabrica cuja composição é baseada simplesmente em qualquer bebida alcoólica ou qualquer produto químico que ele consiga ter em mãos e que é, algumas vezes ao longo do filme, referida corretamente como “veneno”). Alcoólatra, solitário, egoísta e a beira de um ataque de nervos. A beira da loucura. Seu completo estado de desconforto é bem evidenciado pela caracterização dada a ele pelo sempre excepcional Joaquin Phoenix. Na construção de Quell, Phoenix fez questão de torná-lo o protagonista mais desagradável o possível de se assistir. Qualquer beleza do ator é ofuscada por uma personagem cuja voz é algo entre o esganiçado e o enrolado – como se estivesse sempre bêbado – e cujos movimentos corporais sempre parecem desconexos, tortuosos e difíceis de realizar, com sua postura encurvada e seus braços tortos, em que cada passo parece uma tortura. 

Numa de suas andanças alcoolizado, Quell, por simples acaso, acaba encontrando com Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman). Dodd não é uma pessoa qualquer. Ele é o mestre ao qual o título do filme se refere. Mestre de quê, exatamente? De algum tipo de culto ou religião auto-intitulada “A causa”, baseada na concepção de que todos nós estamos na Terra apenas de passagem e que o que vivemos é reflexo de vidas passadas que podem ter existido a trilhões (sim, o termo usado é trilhões) de anos atrás, e que toda a nossa existência está conectada com esse passado e mais um monte de blábláblá que soa a maior bobagem do mundo e que não se baseia em nenhum preceito de racionalidade. A meu ver, “A causa” foi baseada não tão aleatoriamente assim na crença da cientologia, famosa entre celebridades de Hollywood que também se fundamente em questões absurdas. Dessa forma, Dodd – numa interpretação inesquecível de Philip Seymour Hoffman – é o mestre de tudo. Cheio de conversas eloqüentes sobre coisas que não fazem lá muito sentido, mas que, ao serem ditas com tanta convicção, acabam atraindo mentes fracas e perdidas de pessoas que procuram se encaixar. Pessoas como Freddie Quell, que é convidado a fazer parte de todo aquele circo junto a ele, tornando-se um tipo de protegido e uma espécie de experiência usada por Dodd a fim de provar efeitos positivos das práticas da crença em proporcionar mudanças concretas na vida de uma ovelha desgarrada. Desta forma, Quell passa por diversas sessões que incluem das mais ridículas atividades de autocontrole até práticas que beiram a hipnose e o encontro com memórias antigas e fantasmas do passado (passado este que vamos conhecendo aos poucos). Passa a criar uma relação afetiva com Dodd.
Quem também é personagem marcante na história é a esposa de Dodd, Peggy (Amy Adams). Uma espécie de vice-líder da organização que aparentemente acredita piamente em tudo o que se marido diz saber e que está sempre disposta a difundir e defender os preceitos da causa, sendo assim uma parte orgânica de todo sistema (uma interpretação memorável de Amy Adams que faz de um papel aparentemente pequeno – visto que fica pouco tempo em cena – um dos pontos altos do filme). Resta o questionamento: o que de tudo aquilo é verdade? Algo dentre tudo o que é dito com tanta certeza por Dodd é real? Suas sessões de tratamento (seja lá o que for aquilo), que prometem até curar leucemias, desenvolvem algum efeito positivo naquelas pessoas? Tem algo de verdade em todo aquele circo ou tudo não passa de charlatanismo? E Quell? Aparentemente ele não consegue nenhuma melhora com seu convívio direto com o mestre. Mas será que durante todo esse tempo ele nunca se pôs a acreditar em algo? Qual o significado da causa para ele? Teve alguma representatividade em sua vida? 
Bem, estes são questionamentos básicos levantados pelo filme os quais cabe a cada um decidir. Não lhes garanto uma experiência cinematográfica agradável no sentido próprio da palavra. O que espera quem for conferir O mestre são pouco mais de duas horas de questionamentos, perguntas instigantes e confronto direto. Para quem gosta de uma boa direção, prepare-se para um filme belíssimo. Para quem gosta de um bom roteiro, prepare-se para um filme inteligentíssimo. Para quem gosta de um bom elenco, prepare-se para um dos melhores – talvez o melhor – do ano (os três indicados ao Oscar). E para quem gosta de um bom filme de um modo geral, prepare-se para um dos melhores dos últimos tempos.

Leia também:

Lucas Moura

segunda-feira, 18 de março de 2013

As Vantagens de ser Invisível - um livro para ser infinito

Não vou me demorar falando da história ou dos significados por trás dela - Lucas já fez isso quando falou do filme. Sim, o filme é extremamente fiel ao livro, já que o diretor e roteirista, Stephen Chbosky, é o mesmo Stephen Chosky que escreveu o livro. Er... e que filme. Não lembro se foi o primeiro ou um dos primeiros filmes que vi esse ano, só sei que me fez sentir que comecei meu ano de cinéfilo com pé direito.
Pra relembrar a história: Charlie é um garoto que chega ao ensino médio sem amigos e sem muita noção do mundo a sua volta - é invisível -, e é cheio de traumas que aos poucos vão sendo revelados; no caso do livro, aos poucos mesmo. O filme dá mais indícios desses traumas e as causas ficam mais previsíveis. Sua história muda quando conhece os irmãos Sam e Patrick, veteranos, e passa a frequentar o círculo de amigos deles. A partir daí um novo mundo se abre para Charlie; cheio de pessoas que ele ama e para quem ele é alguém, além de várias experiências - um bolo de haxixe, álcool, cigarro, outras drogas e seu primeiro beijo. Mas nem tudo são flores nesse lado do front, e Charlie precisa aprender a lidar com os problemas que seu passado vai trazendo à tona, e também problemas de seus amigos e sua família.
A primeira coisa para a qual chamo atenção é que este é um livro epistolar - escrito em cartas, destinadas a um "querido amigo" e que sempre terminam com "Com amor, Charlie", um tom afetuoso que aumenta o carisma da obra. E que carisma... (desculpem as reticências, mas é pra dar um tom de suspiro) o livro é narrado de um jeito que conseguimos ouvir a voz de Charlie, adolescente que sabe tão pouco da vida e ao mesmo tempo tem uma maturidade admirável. Acho que isso se deve às cartas, que fazem parecer que Charlie está conversando com o leitor. Uma diferença do filme é que o livro é um pouco mais brutal, aqui temos algumas coisas que não foram pro cinema e que mostram que coisas ruins acontecem com todo mundo, e que Charlie não é o único traumatizado da história.
Não pretendo me prolongar, então quero encerrar com a principal lição do livro: existem razões para acreditar na literatura juvenil. Não é porque a maioria dos best sellers oferece histórias insossas de vampiros que parecem a fada Sininho ou lobisomens metrossexuais que todos sejam assim; As vantagens de ser invisível nos traz um drama meio simples, porém genuíno e cativante o suficiente para ser inesquecível. As baboseiras são maioria, mas os simples e bons ainda resistem.

Leia também: As vantagens de ser invisível (filme)

Luís F. Passos

sábado, 9 de março de 2013

No - quando a alegria sorriu para o Chile


Dentre as várias ditaduras que se instalaram entre os países latino-americanos a partir da segunda metade do século XX, uma das mais fortes foi a chilena, liderada com mãos de ferro pelo ditador militar Augusto Pinochet, que no dia 11/09/1973 depôs o presidente chileno Salvador Allende, de tendências socialistas. Os anos que se seguiram à queda do governo de Allende foram de prosperidade econômica para alguns chilenos, paralelamente à miséria e fome vivenciada pela grande maioria da população do país. As marcas principais da ditadura chilena foram as intensas repressões aos movimentos de esquerda, o completo controle dos meios de comunicação e o rastro de vítimas diretas e indiretas, desaparecidos, exilados, perseguidos políticos e mortos deixados por mais de 15 anos de poderio militar. No final dos anos 80, os mesmos EUA que apoiaram os golpes militares ao redor da América já encaravam tal sistema de maneira negativa. Foi criada, então, uma pressão internacional com o intuito de banir as ditaduras. No Chile, tal pressão elevada fez com que o até então inquestionável governo militar abrisse uma concessão: Pinochet não seria eleito diretamente. Primeiro, haveria uma votação democrática em que o povo chileno iria escolher entre o Sí – por mais oito anos de governo de Pinochet, ou No – a favor do fim do governo ditatorial. 
Um dos filmes obrigatórios de 2012, o chileno No trata justamente da campanha vitoriosa do No. De como uma guerra aparentemente perdida tornou-se o ponto mais alto da história moderna do país. O protagonista René (Gael García Bernal) é um talentoso publicitário que aceita envolver-se na campanha. Sua meta é tornar a opção pelo não algo viável através do poder da mídia em influenciar pessoas e formar opiniões. Nada de imagens de torturados, dados de desaparecidos ou pessoas chorando pelo sofrimento causado nos últimos 15 anos, o país já estava cansado de ter medo. O que os chilenos precisavam, no momento, era acreditar que ainda havia uma esperança. Essa esperança resumia-se a uma palavra: No. Votar no não era votar no futuro, e a missão de René era fazer com que as pessoas acreditassem nisso. Desta forma, os poucos 15 minutos abertos à oposição para fazer sua campanha na emissora de televisão (estatal, obviamente) eram povoados de artistas, pessoas alegres felizes e cantantes que juntas, sob o arco-íris da diversidade social e política garantida por um governo genuinamente democrático diziam aos quatro ventos: No.
Como se não bastasse a temática demasiadamente interessante por si só, o filme ainda nos mostra um ponto de vista diferente do processo ditatorial chileno ao passo que faz uma conexão entre dois grandes meios de manipulação social: a mídia e a política. Afinal, resumidamente é um filme sobre publicidade política. É pontuado por momentos de tensão e humor, mas torna-se memorável por excelentes diálogos e por uma minuciosa reconstrução de uma época e de um povo envolvidos num dos fatos históricos mais importantes das últimas décadas. As personagens principais são pessoas comuns, pois é a partir de heróis desconhecidos que se cria a história como nos é apresentada. O comprometimento com a contextualização histórica é levado tão a sério que a fotografia do filme remete em vários momentos a filmagens e gravações caseiras em velhas filmadoras do fim dos anos 80, tornando a experiência cinematográfica mais vívida.

Lucas Moura

terça-feira, 5 de março de 2013

Toda Forma de Amor - amar vale a pena

O que esperar de um filme sobre um desenhista chamado Oliver (Ewan McGregor) que vive solitário na companhia quase exclusiva de seu cachorro Arthur e de uma névoa de luto pela morte recente de seu pai (Christopher Plummer), recém assumido gay após 44 anos casado num casamento sem paixão? Tudo. Toda forma de amor (Beginners, 2010) tem uma capacidade interessante de desenvolver uma história muito sentimental e com uma dose considerável de melancolia sem jamais ser exageradamente dramático. É comovente e divertido na mesma medida. 

O filme centra-se numa temática muito simples de entender: a construção do amor. Não se refere a relacionamentos amorosos entre casais, mas sim do amor de um modo geral. Acompanhamos a construção do relacionamento amoroso entre Oliver e sua nova namorada francesa Anna (Mélanie Laurent) pontuada por momentos de reflexão e flashbacks por parte dele com relação ao seu convívio com seu pai já falecido. Essas memórias variam das mais casuais e cotidianas as mais importantes e reflexivas. De um modo geral, o que Oliver tira deste contato com seu pai são lições efetivas sobre a importância de manter relacionamentos com as pessoas. Não apenas criá-las, mas sim, sustentá-las. Lições sobre como aproveitar a vida da melhor maneira possível enquanto seja tarde demais. Afinal, o próprio Hal levou mais de 70 anos para poder viver sua vida com plenitude depois de décadas preso a um casamento fracassado com uma mulher que, pelo que percebemos das lembranças de infância de Oliver, era tão infeliz quanto. Mesmo estando velho e doente Hal decidiu seguir seu plano em busca de felicidade – não há limite de tempo para tal procura. Assimilar tudo isso para Oliver é extremamente difícil, pois ele nunca foi exposto e nunca conviveu com veracidade de sentimentos. Durante sua infância só conhecia a frieza do casamento de seus pais e quando adulto, sentia-se automaticamente impelido a boicotar relacionamentos amorosos à medida que eles iam se tornando inevitavelmente mais sérios e íntimos. No entanto, Anna parece ser a mulher perfeita para ele. Mas como emplacar a relação dos dois sendo tão inseguro? E mais, a moça, a sua própria maneira, também é tão emocionalmente prejudicada quanto ele, de modo que sua incapacidade em manter relacionamentos quaisquer a faz mudar de cidade e casa constantemente, sem permitir-se construir um lar. 
Surge a problemática do filme: como lidar com o amor? O título original de Toda forma de amor é Beginners, que na tradução quer dizer iniciantes. Todos eles são iniciantes. Estão iniciando uma nova fase de suas vidas baseada em franqueza de sentimentos.
Toda forma de amor é uma diversão completa. Inteligente, sincero, humano e ainda engraçado. Sim, o longa conta com pontuais momentos de comédia e humor irônicos, desde o primeiro encontro entre Oliver e Anna numa festa a fantasia à participação agradabilíssima do cachorro Arthur, com seus “pensamentos em off” e suas “conversas” com Oliver. Oliver e Anna, aliás, parecem ser um dos casais mais “cool” que já vi em filmes, o diretor/roteirista Mike Mills parece gostar de tocar bastante nesta tecla, e Ewan McGregor e Mélanie Laurent realmente tem uma conexão muito interessante como casal. O grande atrativo, no entanto, é mesmo a personagem Hal, interpretação de Christopher Plummer vencedora do Oscar de melhor ator coadjuvante, que é uma personagem extremamente original. Apesar da temática homossexual a cerca da personagem, o filme não se preocupa em levantar bandeiras pelos direitos gays e de defesa do amor entre homens ou coisa do tipo, de modo que o tema surge da forma mais natural possível. É um filme sobre o amor de um modo geral e suas diversas formas de manifestação.


Lucas Moura

domingo, 3 de março de 2013

Dr. Fantástico - o apocalipse nuclear de Kubrick

Falar em Guerra Fria é falar da tensão que existia diante da possibilidade de uma guerra nuclear. Alguns anos depois do mundo assistir horrorizado ao que aconteceu às cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki depois do lançamento de bombas atômicas pelos Estados Unidos, a União Soviética também dominou essa tecnologia e sabe-se que ambos os países produziram milhares de mísseis nucleares e apontaram vários para seus inimigos. Um dos mais tensos momentos dessa história foi a crise dos mísseis de 1962, quando a União Soviética instalou mísseis em Cuba, a apenas trezentos quilômetros da Flórida, e por pouco uma guerra não foi deflagrada. O medo de um conflito nuclear era tamanho que passou a influenciar a cultura; aqui no Brasil, por exemplo, temos a música Eva - não é piada nem viagem: aquela história de "Meu amor, olha só, hoje o sol não apareceu, é o fim da aventura humana na Terra" ou "minha vida é um flash de controles, botões anti-atômicos" reflete o medo de um apocalipse nuclear, já que a enorme quantidade de armas de destruição em massa podiam mandar o planeta pelos ares fácil, facil.
Nesse contexto delicado a lenda Stanley Kubrick produziu uma de suas primeiras obras primas, Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or How I learned to stop worrying and love the bomb, 1964). No filme, a paranoia nuclear, somada à perseguição aos comunistas cria uma tensão tão forte nos Estados Unidos que o programa nuclear chega a ser bizarro: alguns oficiais do Estado Maior podiam promover ataques atômicos sem a permissão do presidente. E mais: depois de dada a ordem, apenas estes oficiais poderiam sabotar os ataques. Mas não havia grande mal nisso, já que nenhum general desobedeceria ao presidente e promoveria uma guerra nuclear capaz de destruir meio planeta. Nenhum, a não ser o general Jack D. Ripper (Sterling Hayden), fanático por fluidos corporais e pela caça aos comunistas, que decide enviar seus bombardeiros B-52 em direção à URSS para destruir as principais bases aéreas e o arsenal nuclear soviéticos.
O filme então é dividido em três cenários: a base aérea de Burpelson, onde o general maníaco esperava ansioso pelo resultado do ataque aos soviéticos, e tinha como prisioneiro o oficial britânico Lionel Mandrake (Peter Sellers), que tentava sabotar o ataque; o Pentágono, onde, na Sala de Guerra, o presidente (novamente Sellers) e o Estado Maior tentavam acalmar o governo russo e descobrir como deter o general Ripper; e o bombardeiro B-52 que liderava a missão, comandado pelo major T. J. "King" Kong (Slim Pickens).
A ideia de fazer um filme sobre a tensão nuclear surgiu na cabeça de Kubrick do nada, e inicialmente seria um filme sóbrio; mas depois de ler Red alert, do militar inglês Peter George, livro em que se baseou o roteiro (que tem um tom seríssimo), o diretor decidiu produzir uma comédia de humor negro, uma sátira da tão delicada tensão do mundo bipolarizado. E que sátira, que diálogos ricos e intensos, principalmente durante as cenas na Sala de Guerra, que são minhas preferidas. São nelas que vemos o presidente Muffley discutindo com seu Estado Maior, especialmente o general Buck Turgidson (George C. Scott), patriota exaltado e figura típica do macartismo, que se controla para não sair no braço com o embaixador russo Sadesky (Peter Bull) - mas que num momento perde o controle, aos gritos do presidente: "Cavalheiros, não podem brigar aqui! É a Sala de Guerra!". E claro, é na Sala de Guerra que aparece o excêntrico Dr. Fantástico (Sellers outra vez), cientista alemão e ex-nazista, especialista em física nuclear cujo braço direito tem vontade própria e insiste em fazer a saudação nazista e tenta estrangular o próprio dono.
As grotescas perso- nagens e seus hábitos bizarros, em oposição ao realismo da tensão nuclear e da possibilidade de uma guerra com poder de devastar a humanidade fazem de Dr. Fantástico um filme único. Destaque para a tripla atuação de Peter Sellers, ótima nas três personagens, seja como cientista nazista, militar que tenta salvar o mundo ou como presidente conciliador que tem que suportar generais radicais e ter muito jogo de cintura para lidar com o presidente soviético, caricaturado como um caipira beberrão. O filme foi indicado ao Oscar de melhor filme, direção, ator e roteiro adaptado. Pra variar, perdeu - Stanley Kubrick foi um dos maiores esnobados pela Academia. Mas o pior é saber quem o derrotou: o singelo e meigo musical Minha linda dama.
Já ia esquecendo: temos aqui uma das mais clássicas cenas da filmografia de Kubrick: o major Kong cavalgando um míssil, gritando feito louco esperando o momento de virar poeira.

Leia também: Lolita

Luís F. Passos