domingo, 3 de março de 2013

Dr. Fantástico - o apocalipse nuclear de Kubrick

Falar em Guerra Fria é falar da tensão que existia diante da possibilidade de uma guerra nuclear. Alguns anos depois do mundo assistir horrorizado ao que aconteceu às cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki depois do lançamento de bombas atômicas pelos Estados Unidos, a União Soviética também dominou essa tecnologia e sabe-se que ambos os países produziram milhares de mísseis nucleares e apontaram vários para seus inimigos. Um dos mais tensos momentos dessa história foi a crise dos mísseis de 1962, quando a União Soviética instalou mísseis em Cuba, a apenas trezentos quilômetros da Flórida, e por pouco uma guerra não foi deflagrada. O medo de um conflito nuclear era tamanho que passou a influenciar a cultura; aqui no Brasil, por exemplo, temos a música Eva - não é piada nem viagem: aquela história de "Meu amor, olha só, hoje o sol não apareceu, é o fim da aventura humana na Terra" ou "minha vida é um flash de controles, botões anti-atômicos" reflete o medo de um apocalipse nuclear, já que a enorme quantidade de armas de destruição em massa podiam mandar o planeta pelos ares fácil, facil.
Nesse contexto delicado a lenda Stanley Kubrick produziu uma de suas primeiras obras primas, Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or How I learned to stop worrying and love the bomb, 1964). No filme, a paranoia nuclear, somada à perseguição aos comunistas cria uma tensão tão forte nos Estados Unidos que o programa nuclear chega a ser bizarro: alguns oficiais do Estado Maior podiam promover ataques atômicos sem a permissão do presidente. E mais: depois de dada a ordem, apenas estes oficiais poderiam sabotar os ataques. Mas não havia grande mal nisso, já que nenhum general desobedeceria ao presidente e promoveria uma guerra nuclear capaz de destruir meio planeta. Nenhum, a não ser o general Jack D. Ripper (Sterling Hayden), fanático por fluidos corporais e pela caça aos comunistas, que decide enviar seus bombardeiros B-52 em direção à URSS para destruir as principais bases aéreas e o arsenal nuclear soviéticos.
O filme então é dividido em três cenários: a base aérea de Burpelson, onde o general maníaco esperava ansioso pelo resultado do ataque aos soviéticos, e tinha como prisioneiro o oficial britânico Lionel Mandrake (Peter Sellers), que tentava sabotar o ataque; o Pentágono, onde, na Sala de Guerra, o presidente (novamente Sellers) e o Estado Maior tentavam acalmar o governo russo e descobrir como deter o general Ripper; e o bombardeiro B-52 que liderava a missão, comandado pelo major T. J. "King" Kong (Slim Pickens).
A ideia de fazer um filme sobre a tensão nuclear surgiu na cabeça de Kubrick do nada, e inicialmente seria um filme sóbrio; mas depois de ler Red alert, do militar inglês Peter George, livro em que se baseou o roteiro (que tem um tom seríssimo), o diretor decidiu produzir uma comédia de humor negro, uma sátira da tão delicada tensão do mundo bipolarizado. E que sátira, que diálogos ricos e intensos, principalmente durante as cenas na Sala de Guerra, que são minhas preferidas. São nelas que vemos o presidente Muffley discutindo com seu Estado Maior, especialmente o general Buck Turgidson (George C. Scott), patriota exaltado e figura típica do macartismo, que se controla para não sair no braço com o embaixador russo Sadesky (Peter Bull) - mas que num momento perde o controle, aos gritos do presidente: "Cavalheiros, não podem brigar aqui! É a Sala de Guerra!". E claro, é na Sala de Guerra que aparece o excêntrico Dr. Fantástico (Sellers outra vez), cientista alemão e ex-nazista, especialista em física nuclear cujo braço direito tem vontade própria e insiste em fazer a saudação nazista e tenta estrangular o próprio dono.
As grotescas perso- nagens e seus hábitos bizarros, em oposição ao realismo da tensão nuclear e da possibilidade de uma guerra com poder de devastar a humanidade fazem de Dr. Fantástico um filme único. Destaque para a tripla atuação de Peter Sellers, ótima nas três personagens, seja como cientista nazista, militar que tenta salvar o mundo ou como presidente conciliador que tem que suportar generais radicais e ter muito jogo de cintura para lidar com o presidente soviético, caricaturado como um caipira beberrão. O filme foi indicado ao Oscar de melhor filme, direção, ator e roteiro adaptado. Pra variar, perdeu - Stanley Kubrick foi um dos maiores esnobados pela Academia. Mas o pior é saber quem o derrotou: o singelo e meigo musical Minha linda dama.
Já ia esquecendo: temos aqui uma das mais clássicas cenas da filmografia de Kubrick: o major Kong cavalgando um míssil, gritando feito louco esperando o momento de virar poeira.

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Luís F. Passos

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