Famoso e
importante por seus filmes ousados e independentes, o diretor John Schlesinger
usou seus filmes como uma plataforma para a exposição de um mundo à parte ao
tradicionalmente mostrado no cinema inglês. Com grande influência da New Wave britânica, Schlesinger
transportou em seu trabalho elementos da contra cultura inglesa, aliados a
figuras joviais e referências sexuais e comportamentais que remetiam a
realidade de seu país no momento histórico pelo qual passava. Apesar de ser
mais conhecido por Perdidos na noite, a trágica narrativa de dois marginalizados
vagando sem esperança pelas ruas sujas de NY, que é um filme que se passa nos
EUA e tem muitos traços presentes da cultura (e contra cultura) americana, sua
importância é mais expressiva para a Inglaterra. Com Darling (1965), ousou ao
trazer uma protagonista extremamente atípica para sua época. No entanto, foi
com Domingo Maldito que o diretor trabalhou em seu filme mais adulto, sério,
comprometido e, ao mesmo tempo, simples.
Domingo
Maldito (Sunday bloody Sunday, 1971) retrata um triângulo amoroso muito pouco
usual: a relação conjunta entre Alex (Glenda Jackson), Bob (Murray Head) e
Daniel (Peter Finch). O ponto é que Alex e Daniel mantêm, ao mesmo tempo, um
relacionamento amoroso duradouro com Bob, sem que ambos tenham nenhum tipo de
contato. Não, não é um ménage, cada um deles mantêm sua própria relação com Bob
simultaneamente, sendo que um sabe da existência do outro e nada faz para
interferir, mantendo um relacionamento aberto com Bob baseado em confiança,
respeito e completa abertura e permissão para infidelidade de ambos os lados.
Uma proposta moderna até para os dias de hoje, Domingo Maldito chocou a
sociedade inglesa e mundial em 1971 ao propor tamanha autonomia sexual para as
suas personagens. Na verdade, este tipo de comportamento já era muito presente
dentro da sociedade, mas em tempos em que a modernidade comportamental trazida
pelos manifestos revolucionários dos anos 60 vivia aliada ao conservadorismo
dos costumes e valores clássicos e antiquados da Terra da Rainha, tal fatia da
sociedade não tinha representatividade em termos de cultura de massa e nem
havia sido retratada de forma tão real.
Os elementos
de choque entre estas duas vertentes são todas marcantes em Domingo Maldito, e
Schlesinger abusa da contemporaneidade para ambientar sua história. Apesar dos
mais de 40 anos, o filme ainda continua inovador por sua temática ousada e pode
ser visto como um grande elemento de estudo de uma época e de uma sociedade. A
correta ambientação nos traz tanto pessoas modernas quanto antiquadas e ainda
nos fala sobre a maior crise econômica do país após a Segunda Guerra Mundial,
associada à inconstância trazida por uma grande onda de desempregos que assolou
o país.
Focando mais
uma vez no trio protagonista, a relação aberta de aceitação mútua entre ambas
as partes parece benéfica a todos, mas, no fim das contas, é mais um daqueles
envolvimentos em que todos saem feridos. Tanto Alex quanto David desejam Bob na
mesma medida, mas apenas podem dar-se como satisfeitos com o que ele pode
oferecer para cada um deles. Apesar de infidelidades serem nitidamente
permitidas, no maior estilo “somos livres para fazermos o que quisermos”,
ciúmes disfarçados, insatisfação, saudades e melancolia também podem ser
percebidos nas personagens (sobretudo com relação a Alex, a mais amarga de
todos). Por mais que lhes sejam permitidos manterem outras relações amorosas, é
nítido que Alex e David realmente estão apaixonados por Bob. Este, no entanto,
é o único que realmente segue à risca esse preceito e até me parece
consideravelmente egoísta. Conhecendo e entendendo os sentimentos de ambos, ele
não mostra problemas mesmo causando tal desconforto para seus dois amantes, que
também não são capazes de dar um fim ao impasse pelo medo de perdê-lo – apesar
desta leve animosidade, o naturalismo do filme não faz com que esse impasse
chegue a ser um atrito hora alguma. A situação só começa a transformar-se
positivamente quando ambos, Alex e David, percebem a essência livre e
descompromissada de Bob, cuja maior ambição é partir para os EUA (indiretamente
abandonando-os), onde pode desenvolver-se melhor como artista, e assim são
capazes de dar melhor continuidade a suas vidas.
As características das personagens não são todas
reveladas de cara. Num período de pouco mais de uma semana (com episódios
marcantes aos Domingos – este filme não mantém nenhuma relação com a música homônima de U2 nem com a história real
a qual esta se refere), vamos conhecendo pedaços das personagens que nos fazem
compreender melhor suas atitudes e sua personalidade. Alex, a minha favorita,
por exemplo, revela-se uma mulher emocionalmente frágil e insatisfeita, tendo
saído recentemente de um divórcio ao qual o filme, sabiamente, não faz grande
exposição. David, por sua vez, é um médico bem sucedido e respeitado, mas cuja
opção sexual não é revelada entre seus pacientes e familiares e cuja
sexualidade envolve insinuações diretas de encontros com figuras excêntricas.
Falando nisso, em nenhum momento durante esta postagem eu falei sobre a relação
homossexual entre David e Bob. Na verdade, foi só uma maneira tanto de guardar
a parte mais importante do filme para o final quanto de mostrar a maneira como
ele a retrata. Domingo Maldito inovou muito em seu tratamento aos personagens
homossexuais. Homossexual assumido, Schlesinger sempre os tratou em seus filmes,
seja de forma discreta, mas insinuante, em Darling como em meio aos tabus da
prostituição masculina em Perdidos na noite. Em Domingo Maldito, classe e
elegância não lhe faltam ao relatar tal envolvimento com grande naturalidade. O
fato de se tratar de um relacionamento homossexual não altera em absolutamente
nada o transcorrer do enredo e as cenas de intimidade entre David e Bob são
mostradas com a mesma simplicidade e carinho que as de Alex e Bob. Não é feito
qualquer alarde pelo fato de haver homossexualidade na trama e a descoberta
deste teor – um beijo apaixonado entre os dois – surge tão organicamente quanto
um aperto de mãos.
Leia também: Darling
Lucas Moura
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