quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Pierrot le fou - liberdade, loucura e Godard

É notória a aversão que Jean-Luc Godard tinha ao cinema norte-americano. Aversão esta que está comprovada em Pierrot le fou (1965), o mais revolucionário de seus primeiros filmes, em que usa diversos elementos clichês de filmes americanos como perseguição, romance, luta, assassinato, roubo e fuga para criticá-los e romper de vez com o chamado cinema burguês.  No enredo isso se aplica ao protagonista, Ferdinand (Jean-Paul Belmondo), um professor universitário que se cansa de sua vida burguesa e tediosa e abandona sua bela esposa e foge com a babá de seus filhos, Marianne (Anna Karina), com quem já tivera um caso.
Envolvidos com um assassinato e com o tráfico de armas, Marianne e Ferdinand (que é insistentemente chamado de Pierrot pela companheira, e sempre responde "Je m'appelle Ferdinand!") simulam um acidente numa estrada e ateiam fogo ao carro em que fugiam, para depois viver a custa de pequenos golpes e enfim chegar ao litoral, onde permanecem pelo resto do filme.
Se Godard já vinha inovando em seus filmes anteriores, com Pierrot le fou ele chuta o pau da barraca e quebra tudo. A narração do filme é cheia de sarcasmo, polêmica, provocação e confronto; não há linearidade narrativa e nem mesmo o acompanhamento psicológico das personagens é linear. Pierrot é, acima de tudo, uma apologia ao inconformismo libertário tão pregado pela Nouvelle vague. Começando pela fuga de Ferdinand, no começo do filme - o que faz deste um filme de estrada, consequentemente é carregado de filosofia - e prosseguindo enquanto eles estão indo rumo ao litoral, mas não com objetivos específicos, e sim decididos a admirar o que vier pelo caminho, vendo beleza onde ninguém mais vê e encarando como arte o que as pessoas vêem como banal.
Ferdinand inicialmente se mostra engrandecido por sua coragem e rebeldia ao romper com a sociedade, mas vai percebendo que não faz ideia do que encontrará pelo caminho e o quanto é pequeno e insignificante perante o mundo. Ele usa a leitura e a escrita como alívio, desabafando suas angústias num diário e ocupando seu tempo com diversos livros que Marianne lhe arranja.
Marianne, por sua vez, durante quase todo o filme antagoniza os sentimentos de Ferdinand - se ele está feliz, ela está triste ou distante, se ele está interessado em algo, ela sente desprezo.  Eles só concordam em uma coisa: seguir sua jornada juntos. É uma personagem muito complexa e bela (inclusive fisicamente, Anna Karina aqui está linda como poucas atrizes conseguiram ser), sempre com ar despreocupado e indiferente, uma forma que ela encontrou para seguir em frente, apenas vivendo e desfrutando a vida.
Pierrot é um filme único - Godard destrói tudo e usa os mais diversos elementos, deixando difícil classificá-lo num só gênero. Ele é drama, é tragédia, é filme de estrada, é musical - Marianne solta a voz muitas vezes, inclusive com cantigas quase infantis. Merece atenção, claro, a narração feita por ambos os protagonistas, que se alternam, completando as frases um do outro, às vezes confundindo um pouco o espectador - afinal, o filme pode não ser difícil como O Desprezo, mas fácil também ele não é. Numa coisa ambos são parecidos: as ótimas direção de arte e fotografia, valorizando as belas paisagens por onde o casal passa.
No Brasil Pierrot le fou ganhou o inexplicável nome O demônio das onze horas. Sem mais.

Leia também: Os incompreendidos
                       O desprezo

Luís F. Passos

2 comentários:

  1. Luís,
    "Pierrot le fou" é um filma genial, de um diretor genial. Não acho que caberia falar de uma "aversão ao cinema norte-americano", afinal, bem ou mal, foi uma cinematografia que também formou o Jean-Luc e tantos outros da sua geração. Não é à toa que, em uma cena do filme, Pierrot pergunta ao diretor norte-americano Samuell Fuller o que é o cinema. Godard também admirava musicais norte-americanos, como "The Pajama Game", ou filmes B, como os da produtora Monogram Pictures (lembra da dedicatória no início de "Acossado"?).
    Quanto ao título brasileiro, há uma explicação:
    "O demônio das onze horas" (em francês, "Le démon d'onze heures") é o título francês do romance policial em que se inspirou livremente o filme de Godard. O título original do livro é "Obsession", do escritor norte-americano de romances policiais Lionel White. Esse livro foi lançado na famosa Série Noire, da editora francesa Galimard, que teve vários outros títulos adaptados, como "Atirem no pianista", do Truffaut, por exemplo. Então o título brasileiro, deixou essa pista enigmática ao escolher o título francês do livro policial.

    Parabéns pelo texto.

    Valeu

    ResponderExcluir
  2. Poxa Barnet, bem lembrado. É que eu não fui específico, mas o cinema que Godard desprezava era o que estava prestes a entrar em decadência: o da mesmice.
    E sobre o título, valeu, eu não sabia. Interessante eles pegarem o título do livro, né? É que nem Os homens que não amavam as mulheres, o titulo brasileiro se refere ao titulo original sueco,e não ao americano "The girl with the dragon tattoo".
    Obrigado pela participação e pelos elogios.

    ResponderExcluir