sexta-feira, 27 de junho de 2014

Filmes pro final de semana - 27/06

1. Malévola (Maleficent, 2014)
Me desculpem, mas eu não achei Malévola a última coca do deserto como todo mundo achou. Gostei? Sim, gostei. Muito bacana ver uma história que explica os motivos da vilã ter se tornado vilã e o que há por trás de uma das histórias da Disney que mais gosto. Maaaas... é muito raso. Passa muito pouco tempo entre o início do filme, com uma Malévola ainda criança, até o mulherão Jolie em que ela se transforma e com o coração amargo. O mérito do filme é um só: Angelina Jolie. Sexy e com ar de sou-melhor-que-você-na-balada, ela faz o que pode pra dar ação ao enredo, mas não é suficiente. Nenhuma personagem ou trecho do filme é sólido o suficiente pra empolgar (opinião minha), e acaba sendo só mais uma dentre as muitas adaptações de contos de fadas.
Nota: 7,0/ 10
2. Julie e Julia (2009)
Falar em Julie e Julia é falar de um filme que eu via quase quinzenalmente e achava a coisa mais linda do mundo. Quase quatro anos depois não tenho a mesma opinião, mas ainda gosto muito dele. É muito bacana ver o resgate de duas histórias reais de mulheres que tinham na culinária e no casamento os pilares de suas vidas. Na década de 1950, Julia Child (Meryl Streep), americana que em Paris aprendeu a cozinhar e começou a escrever um livro com duas amigas francesas; a publicação do livro deu fama e um programa de TV a ela. Cinquenta e dois anos depois, em Nova York, Julie (Amy Adams) é uma mulher que chega aos trinta com a sensação de que não fez nada na vida, e decide escrever um blog sobre a experiência de fazer todas as 524 receitas do livro de Julia no prazo de um ano. Ambas concluíram seus projetos com o apoio de seus maridos e sempre mantendo um bom humor que arranca boas risadas de quem assite ao filme. Bon appétit!
Nota: 8,0/ 10
3. Despedida em Las Vegas (Leaving Las Vegas, 1995)
Esse é um filme imperdível - afinal, não é fácil achar um bom filme em que Nicolas Cage faça um ótimo trabalho. Vivendo o alcoólatra Ben Sanderson, Cage mostra a que ponto um homem pode chegar por causa do alcoolismo: viver na solidão, perder o emprego, e quando a esperança de dias melhores parece acabar, resolve ir a Las Vegas para beber até morrer. Simples, trágico e chocante. Em Las Vegas, Ben conhece a prostituta Sera (Elizabeth Shue), com quem inicia um estranho relacionamento baseado num acordo: ela não reclamaria da bebida e ele não reclamaria da profissão dela. O problema é que mesmo que Ben tente sair de seu deplorável estado, ele já parece irreversível.
Nota: 9,5/ 10
4. Interiores (Interiors, 1978)
Depois de vencer o Oscar nas categorias filme, direção e roteiro com sua inovadora comédia romântica Annie Hall, Woody Allen mostra sua versatilidade no seu primeiro filme de drama: Interiores. Bastante influenciado pela filmografia do ídolo Ingmar Bergman, Woody cria a trama de três irmãs que pouco se conhecem e são distantes, já que sempre esconderam seus medos e verdades dentro de si. Mas o centro da história é a mãe delas, Eve (Geraldine Page), que vê seu casamento de décadas desmoronar e se descobre sem chão e sem rumo. Por sugestão das filhas, Eve começa a trabalhar como decoradora, mas nem o novo emprego consegue fazê-la arrumar a bagunça que tem dentro de si. Este é mais um dos filmes de Woody que infelizmente não são muito conhecidos, apesar da qualidade - altíssima.
Nota: 9,5/ 10
5. Tempos Modernos (Modern Times, 1936)
Resolvi incluir Tempos Modernos na lista porque há um tempo venho pensando que há muito não revejo filmes de Chaplin nem procuro algum que ainda não assisti. E este é um de meus favoritos junto a Luzes da cidade e O grande ditador. Nele Chaplin vive mais uma vez Carlitos, seu nobre vagabundo, que se torna uma vítima do fordismo e da 2ª revolução industrial. No início ele é operário e acaba surtando por causa do trabalho monótono, e ao longo do filme ele vai viver outras tantas crueldades do capitalismo: fome, luta de classes, vai encontrar uma criança órfã cuja família desmoronou por causa do desemprego do pai e ainda ver como um antigo amigo acabou entrando no crime por não ter mais alternativas. Mais uma vez, Chaplin falando muita coisa sem usar uma palavra sequer.
Nota: 10

Luís F. Passos

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Martha Marcy May Marlene – o medo e o mistério

Sabe quando um filme consegue, simplesmente, criar uma carreira? Aquele momento mágico que pega uma atriz, ator ou diretor pouco ou nada conhecidos e os lança sem escalas no estrelato? Um exemplo bem prático e bem conhecido disso que estou dizendo: Jennifer Lawrence. A atriz minimamente conhecida por papéis menores em filmes (como uma atuação competente, porém pequena, em Vidas que se cruzam – onde deve dividir espaço com Charlize Theron e Kim Basinger) ou em séries que alcançou o estrelato graças a sua inesquecível entrega a Inverno da alma. Tão independente quanto forte e audacioso, este foi o filme e o papel que lançou Lawrence no estrelato e iniciou seu caminho à posição de uma das melhores (indiscutivelmente) atrizes de sua geração. Alguns anos após Inverno da alma, e com um estardalhaço injustamente menor, tivemos outro momento muito similar de “a star is born”: Elizabeth Olsen. Isso, Olsen. Isso, das gêmeas. Elizabeth Olsen não é só a irmã mais nova de Mary-Kate e Ashley como também já caminha a passos largos para ser uma das melhores de sua geração. Com um talento nato, a atriz conseguiu em um papel algo que suas carismáticas, mas tolas, irmãs jamais conseguiram: uma personagem de verdade. Num filme sombrio dirigido magistralmente por Sean Durkin, Elizabeth Olsen brilha, seja como Martha, Marcy May ou Marlene no sensacional thriller Martha Marcy May Marlene (2012).
O filme se inicia de maneira abrupta. Após uma apresentação rápida de algo que parece ser uma fazenda ou algo do tipo, uma jovem, Martha (Elizabeth Olsen), foge ao amanhecer. Nessa sua fuga, ela é perseguida por pessoas que pareciam morar consigo naquele lugar e, em meio a uma decisão que não parece muito confiante, porém nitidamente movida por desespero, liga para sua irmã (Sarah Paulson, sempre ótima. Sempre.) para procurar abrigo em sua casa – que se revela uma linda mansão à beira de um lago – onde esta vive com seu marido. É deste lugar e com base nos flashbacks que vão afetando cada vez mais a cabeça de Martha que vamos tendo cada vez mais noção do que o filme trata.
Aquela fazenda, na verdade, não é um lugar comum. Lá funciona uma espécie de seita. Um culto liderado por um homem com um ar misterioso que chega a ser quase assustador (John Hawkes, sempre ótimo. Sempre.) onde jovens ovelhas desgarradas (não há qualquer explicação sobre as motivações e os caminhos que trilharam para que fossem parar ali) vivem numa espécie de estado de plena comunhão. Comunhão de corpo e alma, em que as atividades domésticas, as posses, objetos pessoais, e, até mesmo, a mente e o corpo são ferramentas de uso comum de todo o grupo. Uma grande comunhão intelectual e física. O que num primeiro momento pode parecer como uma proposta muito bucólica e muito sensível com ideais reforçados de cuidar um do outro e serenatas com voz e violão em grupo vai se revelando, cada vez mais, sombrio. Com o passar do filme vamos entendendo a verdadeira face da seita. E é uma face bem desagradável. O que primeiro aparecia como uma sociedade do bem comum mostra-se como uma organização social extremamente machista, sexualmente violenta, humilhante e perigosíssima que promove uma destruição completa do indivíduo em si como também de seus padrões de vida e funcionamento numa sociedade que poderíamos considerar como normal.
É exatamente assim que encontramos Martha. Aliás, Martha é apenas seu nome de batismo. Dentro da seita (não sabemos o nome da organização) ela é conhecida como Marcy May. Para pessoas fora deste círculo, qualquer mulher do grupo deve se apresentar como Marlene (daí o título do filme). Após sua fuga (por motivos que não podem ser revelados aqui) nós temos uma personagem extremamente fragilizada. O que percebemos dela, na verdade, é muito pouco. De forma muito forte, Martha mantém um enorme distanciamento não apenas com a irmã e seu marido como também com o espectador. Nós sabemos as coisas mais marcantes, trazidas à tona pelos flashbacks, as quais ela sofreu dentro da seita, mas não temos total controle sobre quem ela é. Na própria definição da personalidade, um traço que ressalta é sua incapacidade de confiar, e isso fica evidente na sua relação com a irmã. Esta aparenta ser a única personagem realmente disposta a ajudar Martha, a compreender seus problemas e entender o que aconteceu com ela e porque ela sumiu por dois anos, mas entre as duas há um verdadeiro muro. Totalmente intransponível. Conversas vagas, olhares descruzados. Amor e medo, aliados. A gênese dessa dinâmica familiar tão instável nunca nos é devidamente explicada, mas há sugestões sobre onde tudo pode ter surgido.
Nesse período que passa com a irmã, vemos que Martha também perdeu completamente quase qualquer noção sobre comportamento social, o que aumenta muito a tensão existente na casa. À mesma medida, Martha também passa a ser cada vez mais assombrada pelas lembranças que trouxe da seita, as quais vão lhe lançando, aos poucos, a um estado verdadeiramente paranoico. O medo pelo que viu, a compreensão do que viveu e também o medo de que possa estar sendo perseguida por aquelas pessoas a levam a um colapso nervoso.
É isso. Um filme tenso, misterioso e sem muitas respostas. Provavelmente, desagradável para aqueles que preferem enredos mais lineares e tradicionais com começo, meio e fim bem definidos. O que temos aqui é mais uma proposta e apenas um pequeno olhar de mero observador sobre pessoas que guardam consigo uma tão interessante quanto misteriosa história de vida. É como um iceberg. Apesar do impacto pelo que vemos, sabemos que tem muito mais que não está sob nosso alcance.

Nota: 10

Lucas Moura

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Filmes pro final de semana - 20/06

1. Moulin Rouge - amor em vermelho (Moulin Rouge!, 2002)
O cabaré mais famoso do mundo chegou às telonas nesse inesquecível filme do habilidoso e extravagante diretor Baz Luhrmann. Na Paris do fim do século XIX, uma geração de jovens e pobres artistas buscava deixar sua marca na cultura da época, visando uma arte que girasse em torno da beleza, da verdade, da liberdade e do amor. Entre esses artistas há o escritor Christian (Ewan McGregor), que se apaixona pela mais bela das cortesãs do Moulin Rouge, Satine (Nicole Kidman) - mas entre os dois havia os planos de transformar o cabaré num teatro, um rico e maléfico barão e a doença que era o mal do século. Moulin Rouge fascina pelo exagero, brilho, beleza, músicas (apesar de não ter nenhuma música original, usando clássicos como Diamonds are the girls best friends e Like a virgin) e tem o grande mérito de ressuscitar o decrépito gênero dos musicais, sendo o primeiro musical em mais de vinte anos indicado ao Oscar de melhor filme.
Nota: 9,5/ 10
2. Central do Brasil (1998)
Depois de muito, muito tempo longe dos holofotes internacionais, o cinema brasileiro voltou a brilhar no fim dos anos 90 com a emocionante história de um menino órfão (Vinícius de Oliveira) e de uma professora aposentada (Fernanda Montenegro) que tenta levá-lo até seu pai. As andanças da dupla pelo interior do país e antes disso, pelo Rio de Janeiro, são uma análise da crise social provocada por mais de vinte anos de governo militar, a inflação herdada e agravada no fim dos anos 80/ começo dos 90 e a falta de investimentos no serviço público e crescimento das diferenças sociais que foram efeitos colaterais da tentativa de pôr fim à inflação. Pobreza, analfabetismo e violência são vistos por toda a parte. Mas além disso, o filme mostra a bela amizade que surge entre o menino e a senhora, e também fala de amor e solidão. O reconhecimento internacional veio com o Urso de Ouro de melhor filme, Urso de Prata de melhor atriz pra Fernanda Montenegro, Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, indicações aos Oscar de melhor filme estrangeiro e melhor atriz.
Nota: 10
3. Rain Man (1988)
Coisa que ficou no passado: Tom Cruise ser um ótimo ator e Dustin Hoffman (sempre excelente) trabalhando a pleno vapor. Aqui Cruise vive Charlie, um vendedor de carros usados que viaja em busca de um irmão que ele mal sabia que existia para conseguir a herança multimilionária que o pai deixara para o suposto irmão mais velho. Daí ele encontra Raymond (Hoffman), um simpático autista que vive internado num asilo e cuja mente está num mundinho particular. Os dois pegam estrada por Raymond se recusar de todo jeito a entrar num avião, e a viagem serve pra unir os irmãos que aparentemente nunca se viram e que são tão diferentes e dar algum caráter a Charlie. O filme abocanhou Urso de Ouro, Oscar de filme, direção, roteiro e ator - Hoffman tá incrível, num dos pontos máximos de sua carreira.
Nota: 9,5/ 10
4. O bebê de Rosemary (Rosemary's Baby, 1968)
 Este clássico do terror atravessou décadas ganhando força e fãs por focar o lado psicológico de suas personagens. Quando o jovem casal Rosemary (Mia Farrow) e Guy (John Cassavetes) se muda para um antigo e enorme apartamento no coração de Manhattan, a jovem mal podia imaginar a trama macabra que estava por começar. Rosemary estava grávida de seu primeiro filho, mas a bênção da gestação acaba por se tornar uma maldição - graças à ambição de Guy, aliado aos macabros vizinhos. Nesse ponto tá o brilhantismo do filme: falar de traição, da impossibilidade de confiar na própria família ou nos amigos mais próximos, ou em mais ninguém. Polanski, na época um jovem diretor que já dera provas de seu grande talento, se consolidou manipulando medos tão viscerais. Quem também se deu muito bem foi Mia Farrow, que apesar de eu não gostar e achar uma vadia (kkk) fez uma Rosemary que não dá pra pensar noutra atriz.
Nota: 10
5. Os Sapatinhos Vermelhos (The Red Shoes, 1948)
Ô coisas lindas são esses filmes antigos restaurados. Deus abençoe as fundações e os grandes estúdios que trabalham recuperando filmes para que não se percam no tempo, como metade de todos os filmes feitos antes de 1950. A primeira restauração que assisti foi Os Sapatinhos Vermelhos, a maravilhosa história de uma garota, Victoria (Moria Shearer) que por ter parentesco com a aristocracia inglesa teve de dar duro para mostrar seu valor no ballet, em especial para o diretor Boris Lemontov (Anton Walbrook). Quando enfim consegue a atenção do brilhante e exigente diretor, ganha o papel principal no novo espetáculo do grupo, Os sapatinhos vermelhos, baseado no conto de Andersen, sobre uma garota que calça sapatilhas mágicas e dança até morrer de exaustão. Um filme sobre amor, ciúmes e dedicação extrema que é muito belo e pra mim é um dos melhores filmes de dança já feitos.
Nota: 10

Luís F. Passos

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Chico, o setentão

Fui apresentado ao nome Chico Buarque quando criança, não lembro bem em que ano, por ele estar ao lado de uns versos no meu livro de português. Era a letra de A banda, música que eu já conhecia, apesar de não saber quem era seu compositor. Ainda nesse ano, estava à toa na vida e no mesmo livro vi outra música, João e Maria, cujos batalhões, alemães e canhões me faziam rir ao mesmo tempo em que admirava a beleza da letra - que hoje é uma de minhas preferidas, e pra mim é o cúmulo da poesia; nem mesmo um poema é tão poético. O grande reencontro com Chico aconteceu anos depois, quando eu já era bem crescido e vivia procurando novos cantores e bandas pra ouvir, pois parecia que eu estava enjoando de todos. Dentre os escolhidos estava Chico, por alguns motivos como eu não conhecer nada de um cara tão famoso e importante e uma amiga de escola ser apaixonada por ele.  
Então lá fui eu atrás das músicas do cara. E começar com Construção é pra deixar qualquer um doido. Como uma música podia ser tão boa, tão bem trabalhada, tão rica? E ao longos dos meses fui conhecendo a obra musical de Chico e suas várias facetas. O político da Roda Viva, o trovador de Morena dos Olhos d'água, o amante de Tatuagem - destaque para os eu líricos femininos inesquecíveis -, o malandro de Mambembe, o sambista de Vai passar, entre outras. Um talento que se destaca desde a década de 60, nos festivais da Música Brasileira organizados pela Record, atravessando os duros anos da ditadura, vivendo no exílio na Itália (sempre produzindo; impossível não lembrar de Meu caro amigo) e exibindo habilidade na literatura e no teatro também.
Em 2010 Chico lançou seu último livro, Leite Derramado. Já falei sobre ele aqui, e também comentei que sabe Deus porque toda vez que via a capa lembrava de Olhos nos olhos e vinha à minha cabeça o "quando você me deixou, meu bem..." - não deve ter nada a ver, só doidice minha. O fato é que quando li gostei muito, os críticos também gostaram e o livro foi vencedor do prêmio Jabuti. Cheguei a ler outra obra dele, Estorvo, também muito boa. 
Já tem tempo que não leio nada de Chico, mas sempre tô ouvindo suas canções. A última paixonite é Cecília, simples mas de singular beleza. Além daquelas que são impossíveis de ficar muito tempo sem ouvir, como Carolina, Eu te amo, Olhos nos olhos, Samba do grande amor, Ela faz cinema, Geni e o zepelim, Atrás da porta (seja na voz de Chico ou de Elis), Cálice, Minha história, As vitrines, entre tantas outras. Ah, e Querido diário e Se eu soubesse, do cd lançado em 2011.
E hoje Chico faz 70 anos e o Brasil, além de muita gente mundo afora, comemora com ele e lhe deseja tudo o que é coisa boa e muitos anos de vida pra que ele continue enriquecendo nossa música, nossa literatura, nossa arte. Pra que o gênio, filho de um dos maiores intelectuais do século passado, continue cativando fãs com a austera simpatia, sorrisos contidos e a discrição condizente com um senhor tão elegante - e nas palavras de Maria Bethânia, o homem mais bonito do mundo. Parabéns, Chico.

Luís F. Passos

domingo, 15 de junho de 2014

Domingo Maldito - na revolução comportamental inglesa


Famoso e importante por seus filmes ousados e independentes, o diretor John Schlesinger usou seus filmes como uma plataforma para a exposição de um mundo à parte ao tradicionalmente mostrado no cinema inglês. Com grande influência da New Wave britânica, Schlesinger transportou em seu trabalho elementos da contra cultura inglesa, aliados a figuras joviais e referências sexuais e comportamentais que remetiam a realidade de seu país no momento histórico pelo qual passava. Apesar de ser mais conhecido por Perdidos na noite, a trágica narrativa de dois marginalizados vagando sem esperança pelas ruas sujas de NY, que é um filme que se passa nos EUA e tem muitos traços presentes da cultura (e contra cultura) americana, sua importância é mais expressiva para a Inglaterra. Com Darling (1965), ousou ao trazer uma protagonista extremamente atípica para sua época. No entanto, foi com Domingo Maldito que o diretor trabalhou em seu filme mais adulto, sério, comprometido e, ao mesmo tempo, simples.

Domingo Maldito (Sunday bloody Sunday, 1971) retrata um triângulo amoroso muito pouco usual: a relação conjunta entre Alex (Glenda Jackson), Bob (Murray Head) e Daniel (Peter Finch). O ponto é que Alex e Daniel mantêm, ao mesmo tempo, um relacionamento amoroso duradouro com Bob, sem que ambos tenham nenhum tipo de contato. Não, não é um ménage, cada um deles mantêm sua própria relação com Bob simultaneamente, sendo que um sabe da existência do outro e nada faz para interferir, mantendo um relacionamento aberto com Bob baseado em confiança, respeito e completa abertura e permissão para infidelidade de ambos os lados. Uma proposta moderna até para os dias de hoje, Domingo Maldito chocou a sociedade inglesa e mundial em 1971 ao propor tamanha autonomia sexual para as suas personagens. Na verdade, este tipo de comportamento já era muito presente dentro da sociedade, mas em tempos em que a modernidade comportamental trazida pelos manifestos revolucionários dos anos 60 vivia aliada ao conservadorismo dos costumes e valores clássicos e antiquados da Terra da Rainha, tal fatia da sociedade não tinha representatividade em termos de cultura de massa e nem havia sido retratada de forma tão real.

Os elementos de choque entre estas duas vertentes são todas marcantes em Domingo Maldito, e Schlesinger abusa da contemporaneidade para ambientar sua história. Apesar dos mais de 40 anos, o filme ainda continua inovador por sua temática ousada e pode ser visto como um grande elemento de estudo de uma época e de uma sociedade. A correta ambientação nos traz tanto pessoas modernas quanto antiquadas e ainda nos fala sobre a maior crise econômica do país após a Segunda Guerra Mundial, associada à inconstância trazida por uma grande onda de desempregos que assolou o país.

Focando mais uma vez no trio protagonista, a relação aberta de aceitação mútua entre ambas as partes parece benéfica a todos, mas, no fim das contas, é mais um daqueles envolvimentos em que todos saem feridos. Tanto Alex quanto David desejam Bob na mesma medida, mas apenas podem dar-se como satisfeitos com o que ele pode oferecer para cada um deles. Apesar de infidelidades serem nitidamente permitidas, no maior estilo “somos livres para fazermos o que quisermos”, ciúmes disfarçados, insatisfação, saudades e melancolia também podem ser percebidos nas personagens (sobretudo com relação a Alex, a mais amarga de todos). Por mais que lhes sejam permitidos manterem outras relações amorosas, é nítido que Alex e David realmente estão apaixonados por Bob. Este, no entanto, é o único que realmente segue à risca esse preceito e até me parece consideravelmente egoísta. Conhecendo e entendendo os sentimentos de ambos, ele não mostra problemas mesmo causando tal desconforto para seus dois amantes, que também não são capazes de dar um fim ao impasse pelo medo de perdê-lo – apesar desta leve animosidade, o naturalismo do filme não faz com que esse impasse chegue a ser um atrito hora alguma. A situação só começa a transformar-se positivamente quando ambos, Alex e David, percebem a essência livre e descompromissada de Bob, cuja maior ambição é partir para os EUA (indiretamente abandonando-os), onde pode desenvolver-se melhor como artista, e assim são capazes de dar melhor continuidade a suas vidas.

As características das personagens não são todas reveladas de cara. Num período de pouco mais de uma semana (com episódios marcantes aos Domingos – este filme não mantém nenhuma relação com a música homônima de U2 nem com a história real a qual esta se refere), vamos conhecendo pedaços das personagens que nos fazem compreender melhor suas atitudes e sua personalidade. Alex, a minha favorita, por exemplo, revela-se uma mulher emocionalmente frágil e insatisfeita, tendo saído recentemente de um divórcio ao qual o filme, sabiamente, não faz grande exposição. David, por sua vez, é um médico bem sucedido e respeitado, mas cuja opção sexual não é revelada entre seus pacientes e familiares e cuja sexualidade envolve insinuações diretas de encontros com figuras excêntricas. Falando nisso, em nenhum momento durante esta postagem eu falei sobre a relação homossexual entre David e Bob. Na verdade, foi só uma maneira tanto de guardar a parte mais importante do filme para o final quanto de mostrar a maneira como ele a retrata. Domingo Maldito inovou muito em seu tratamento aos personagens homossexuais. Homossexual assumido, Schlesinger sempre os tratou em seus filmes, seja de forma discreta, mas insinuante, em Darling como em meio aos tabus da prostituição masculina em Perdidos na noite. Em Domingo Maldito, classe e elegância não lhe faltam ao relatar tal envolvimento com grande naturalidade. O fato de se tratar de um relacionamento homossexual não altera em absolutamente nada o transcorrer do enredo e as cenas de intimidade entre David e Bob são mostradas com a mesma simplicidade e carinho que as de Alex e Bob. Não é feito qualquer alarde pelo fato de haver homossexualidade na trama e a descoberta deste teor – um beijo apaixonado entre os dois – surge tão organicamente quanto um aperto de mãos.

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Lucas Moura