Cannes, maio de 2016. O Brasil ansiava pela exibição de Aquarius, filme dirigido por Kleber Mendonça Filho e estrelado por Sonia Braga, que estava na mostra competitiva do mais importante festival de cinema do mundo. Não bastasse a atenção atraída pelo filme, diretor e elenco exibiram placas no tapete vermelho contra o impeachment da presidenta Dilma, que havia sido afastada provisoriamente pelo Senado cinco dias antes. Polêmica a parte, Aquarius foi um dos filmes mais comentados em Cannes, e mesmo não recebendo nenhum prêmio, foi logo consagrado pela crítica - pelo menos pela crítica decente. Maiores detalhes no fim deste post.
A presença de Sonia Braga no filme é um fato, no mínimo, muito feliz. A experiente atriz, musa dos anos 80, retorna mostrando que ainda tem muito da beleza e tem totalmente o talento de outrora. Ela dá vida a Clara, jornalista aposentada e escritora, que vive num antigo e confortável apartamento à beira mar na localização mais privilegiada de Recife, a praia de Boa Viagem. O enredo do filme, razoavelmente simples, acompanha a luta de Clara para permanecer em seu prédio, já que uma construtora pretende derrubá-lo para construir um novo, moderno e enorme edifício no lugar. Todos os outros moradores já venderam suas casas à construtora, exceto Clara, que permanece firme na sua decisão, enfrentando o ódio da empresa e de alguns ex-vizinhos, além da preocupação dos filhos que temem por sua segurança num prédio vazio.
Através do apego de Clara a seu apartamento antigo, em que viveu a maior parte de sua vida e criou seus filhos, Aquarius trata de memória e resistência, sem preferir um tema ao outro. Clara é uma mulher forte, decidida, que resolve não ceder a nada e permanecer em sua casa, batendo de frente com um engenheiro arrogante que se gaba por ter estudado fora (Humberto Carrão) e suportando o assédio da construtora, levado a níveis absurdos quando a jornalista mostra que não é de desistir. Clara é apegada a todas as memórias construídas e contidas no apartamento, mas nem por isso é uma saudosista. Ela se prende ao passado sem se esquivar do que é novo - demonstrado, por exemplo, numa entrevista em que ela se chateia quando a repórter, admirada com sua coleção de vinis, pergunta se ela não gosta do formato digital - e permanece de coração e alma abertos para novas experiências, como participar da criação de seu neto, assim como criou os filhos no edifício Aquarius.
É louvável a forma como o diretor conduz a trama que é ao mesmo tempo tensa e bela. São muitos os momentos de conflito, e diversas vezes o espectador fica ansioso com a possibilidade de uma briga, de uma agressão, de uma reação descontrolada - muitas vezes fica só na expectativa, mas quando algo explode, a atuação do grande elenco nos proporciona cenas incríveis. A escolha de Sonia Braga para protagonista tem relação com a temática, já que a atriz tava sumida e há quinze anos não participava de um filme nacional, mas ela mostra que seu valor está muito além do simbolismo e presenteia o público com uma de suas maiores atuações. Sonia aparece aos vinte minutos de filme (que inicia com um flashback passado nos anos 80) e o carrega pelas duas horas subsequentes com louvor.
O filme também impressiona pelo tanto que consegue falar da sociedade, mesmo sutilmente, nas entrelinhas. A construtora, seu dono e o engenheiro (que é neto do dono) acham que podem passar por cima de Clara usando seu poder e pelo fato dela ser mulher e viúva, atormentando-a de diversas formas, inclusive tentando intimidá-la diretamente, em discussões. Há ainda pequenos detalhes como o filho da empregada que foi morto atropelado por um motorista bêbado que não foi condenado pelo crime, fantasmas sociais como insinuações a ligações religiosas do engenheiro, uma possível ligação de um parente de Clara com políticos corruptos e pequenas mostras de desigualdade social como a divisão da praia que até certo ponto é bairro rico e depois é Brasília Teimosa, comunidade que até anos atrás era uma conhecida favela de palafitas.
A ousadia do elenco em Cannes teve um preço. Ao ser lançado no Brasil, Aquarius não foi exibido em um número de salas de cinema adequado para um filme tão bem recebido pela crítica. Resistência originada no governo golpista ou na mídia mais tradicional e igualmente golpista, possivelmente. Houve inclusive críticas muito negativas por parte de colunistas que representam o que há de pior no jornalismo, que afirmaram que o dever das pessoas de bem e com vergonha na cara era boicotar o filme - e o diretor Kleber Mendonça Filho brilhantemente usou tal frase no pôster, junto de críticas muito positivas de outras revistas. Talvez o pior golpe tenha vindo da parte do governo golpista, que não lançou Aquarius como candidato brasileiro ao Oscar de melhor filme estrangeiro - que depois de ter sido classificado pelo Cahiers du Cinéma como um dos dez melhores filmes do ano, tinha real chance de vitória. Por outro lado, Pequeno segredo, filme indicado pelo ministério da cultura, já foi riscado da lista da Academia.
Nota: 10
Luís F. Passos
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