segunda-feira, 12 de junho de 2017

Corra! – novas abordagens, antigos problemas



Em meio a tanta agitação política e social no mundo, a década de 2010 tem sido marcada pelo crescente aumento da difusão de ideias liberais e maior abertura do diálogo e denúncias relativas a pontos críticos de nossa sociedade, como as questões sociais, o papel da mulher e a diversidade sexual. As artes, em sua obrigação de refletirem a sociedade na qual estão inseridas, não podem ficar de fora de tal movimento. Sendo a sétima arte uma das formas mais queridas de arte em nossa sociedade, sua participação é de vital importância neste processo, especialmente em temos onde a televisão, vivendo uma nova era de ouro, esbanja diversidade e riqueza de personagens em séries que passeiam pelos mais diversos estilos com excelência. A questão racial é um dos pontos que tem ganhado cada vez mais visibilidade no cinema. Do início da década para cá, consigo lembrar facilmente de filmes marcantes sobre o tema como Histórias cruzadas, Fruitvale Station, Selma, Moonlight, entre outros. É um tema que desde o princípio – desde os anos 60 com filmes como Adivinhe quem vem para o jantar? – vem sendo sempre retratado em dois gêneros: drama e comédia (num sentido de sátira e crítica social). Eis que, em meio a tempos de inovações e experimentações, surge um audacioso diretor disposto a abordar o racismo através de um gênero bastante complicado, banalizado e raramente levado a sério: o horror. E o resultado? Genial.
Corra! (Get out, 2017) vem sido aclamado por onde passa desde sua estreia no Festival de Sundance (um poço de maravilhas) e retrata o racismo de uma maneira que, eu tenho certeza, ninguém jamais tinha abordado. Em linhas gerais, Corra! retrata a história de um fotógrafo chamado Chris (performance sensacional de Daniel Kaluuya, protagonista do episódio 15 million merits da série Black Mirror) que vai visitar os pais de sua namorada, Rose (Allisson Williams). A questão é que Chris é negro e sua namorada branca. É o primeiro namorado negro dela e sua família não sabe que ele é negro. O que é algo que realmente não deveria importar acaba importando muitas vezes, mas em teoria não vai ser nenhum problema já que Rose faz questão de frisar sobre como sua família é amorosa e como respeitam a diferença e como são eleitores de Obama, etc. Mesmo assim, o clima de desconfiança já está implantado – imagino que seja difícil ser negro numa sociedade tão racista e não se sentir constantemente num nível basal de tensão.
Chegando à casa dos pais de Allisson, num local isolado onde as únicas pessoas negras são as pessoas que trabalham para a família de Rose, tudo realmente parece que está caminhando bem. No entanto, por baixo da postura de acolhimento, que muitas vezes soa um pouco forçada, existem interesses bastante sombrios que vão se revelando numa trama surpreendente e de clímax final intenso.
Não posso falar muito do roteiro, pois este é um daqueles filmes que não dá para dar muitas informações se não estraga as diversas surpresas que vão acontecendo, mas dá para falar das coisas que me agradaram bastante. Um primeiro ponto que eu achei genial com relação à Corra! é a maneira como o filme mostra Chris sempre numa posição de legítimo desconforto. Estando cercado por pessoas brancas que agem o tempo todo como se nunca tivessem convivido ou dialogado com uma pessoa negra, tratando-o com um ar de admiração, curiosidade e algumas vezes até ultrapassando limites de respeito, o clima de parte do filme não é de horror, mas sim de desconforto e constrangimento. O espectador consegue sentir na pele a sensação de ser diferente e de estar exposto. Isto por si só já vale a sessão. Ainda no início também temos uma metáfora entre Chris e um veado, assumindo uma posição de caça ou de animal abatido, que é bem interessante. No mais, o filme se desenrola de uma maneira tal que a temática da metade final já retrata questões mais relativas à apropriação física e psicológica – o filme traz isso da maneira mais literal possível – que acontece entre raças distintas quando uma tem supremacia sobre outra. Acontece a tomada de atributos desejáveis em negros por uma população branca, rica e inescrupulosa mais interessada em tratá-los como objetos e experimentos que como percebê-los como indivíduos.
No mais, Corra! traz personagens interessantes como os empregados da casa, ambos de certa forma fundamentais com seu comportamento bizarro e mecânico que guarda segredos perturbadores e a mãe de Rose, uma psiquiatra vivida por Catherine Keener, que trabalha com hipnose e cujos procedimentos rendem as cenas mais claustrofóbicas do longa. Outro ponto alto da trama é a presença do melhor amigo de Chris, Rod (LilRel Howery) que traz um alívio cômico perfeito, porque, sim, Corra! não se satisfaz em ser um filme de horror, contendo também muitos elementos de comédia. E, de certa forma, ficção científica ainda no meio.
Existem algumas coisas no filme que não me agradaram tanto, como alguns daqueles momentos de susto pré-fabricado de filmes de horror/terror como pessoas passando pelo corredor do nada ao som de uma música estridente ou fazendo coisas estranhas e que, a meu ver, não adicionam nada ao enredo e só estão presentes para tentar aumentar a abrangência do público e tornar o longa mais palatável trazendo algo que as pessoas estão acostumadas e, de certa forma, estão esperando que venha de um filme do gênero, mas estes são pontos fáceis de relevar quando se percebe o tamanho da criatividade investida numa produção que mistura satisfatoriamente tantos diferentes elementos cinematográficos com harmonia, trazendo um ponto de vista novo e dando importante contribuição para o diálogo a cerca do racismo nos dias atuais. É um filme muito interessante e muito inteligente, feito na medida para quem é fã de coisas inovadoras e que fujam do lugar comum.
Nota: 10
 
Lucas Moura

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