Em meio a tanta
agitação política e social no mundo, a década de 2010 tem sido marcada pelo
crescente aumento da difusão de ideias liberais e maior abertura do diálogo e
denúncias relativas a pontos críticos de nossa sociedade, como as questões
sociais, o papel da mulher e a diversidade sexual. As artes, em sua obrigação
de refletirem a sociedade na qual estão inseridas, não podem ficar de fora de
tal movimento. Sendo a sétima arte uma das formas mais queridas de arte em
nossa sociedade, sua participação é de vital importância neste processo,
especialmente em temos onde a televisão, vivendo uma nova era de ouro, esbanja
diversidade e riqueza de personagens em séries que passeiam pelos mais diversos
estilos com excelência. A questão racial é um dos pontos que tem ganhado cada
vez mais visibilidade no cinema. Do início da década para cá, consigo lembrar
facilmente de filmes marcantes sobre o tema como Histórias cruzadas, Fruitvale
Station, Selma, Moonlight, entre outros. É um tema que
desde o princípio – desde os anos 60 com filmes como Adivinhe quem vem para o
jantar? – vem sendo sempre retratado em dois gêneros: drama e comédia (num sentido
de sátira e crítica social). Eis que, em meio a tempos de inovações e
experimentações, surge um audacioso diretor disposto a abordar o racismo
através de um gênero bastante complicado, banalizado e raramente levado a
sério: o horror. E o resultado? Genial.
Corra! (Get out, 2017) vem sido
aclamado por onde passa desde sua estreia no Festival de Sundance (um poço de
maravilhas) e retrata o racismo de uma maneira que, eu tenho certeza, ninguém
jamais tinha abordado. Em linhas gerais, Corra!
retrata a história de um fotógrafo chamado Chris (performance sensacional de Daniel
Kaluuya, protagonista do episódio 15
million merits da série Black Mirror)
que vai visitar os pais de sua namorada, Rose (Allisson Williams). A questão é
que Chris é negro e sua namorada branca. É o primeiro namorado negro dela e sua
família não sabe que ele é negro. O que é algo que realmente não deveria
importar acaba importando muitas vezes, mas em teoria não vai ser nenhum
problema já que Rose faz questão de frisar sobre como sua família é amorosa e
como respeitam a diferença e como são eleitores de Obama, etc. Mesmo assim, o
clima de desconfiança já está implantado – imagino que seja difícil ser negro
numa sociedade tão racista e não se sentir constantemente num nível basal de
tensão.
Chegando à casa dos
pais de Allisson, num local isolado onde as únicas pessoas negras são as
pessoas que trabalham para a família de Rose, tudo realmente parece que está
caminhando bem. No entanto, por baixo da postura de acolhimento, que muitas
vezes soa um pouco forçada, existem interesses bastante sombrios que vão se
revelando numa trama surpreendente e de clímax final intenso.
Não posso falar muito
do roteiro, pois este é um daqueles filmes que não dá para dar muitas
informações se não estraga as diversas surpresas que vão acontecendo, mas dá
para falar das coisas que me agradaram bastante. Um primeiro ponto que eu achei
genial com relação à Corra! é a
maneira como o filme mostra Chris sempre numa posição de legítimo desconforto.
Estando cercado por pessoas brancas que agem o tempo todo como se nunca
tivessem convivido ou dialogado com uma pessoa negra, tratando-o com um ar de
admiração, curiosidade e algumas vezes até ultrapassando limites de respeito, o
clima de parte do filme não é de horror, mas sim de desconforto e
constrangimento. O espectador consegue sentir na pele a sensação de ser
diferente e de estar exposto. Isto por si só já vale a sessão. Ainda no início
também temos uma metáfora entre Chris e um veado, assumindo uma posição de caça
ou de animal abatido, que é bem interessante. No mais, o filme se desenrola de
uma maneira tal que a temática da metade final já retrata questões mais
relativas à apropriação física e psicológica – o filme traz isso da maneira
mais literal possível – que acontece entre raças distintas quando uma tem
supremacia sobre outra. Acontece a tomada de atributos desejáveis em negros por
uma população branca, rica e inescrupulosa mais interessada em tratá-los como
objetos e experimentos que como percebê-los como indivíduos.
No mais, Corra! traz personagens interessantes
como os empregados da casa, ambos de certa forma fundamentais com seu
comportamento bizarro e mecânico que guarda segredos perturbadores e a mãe de
Rose, uma psiquiatra vivida por Catherine Keener, que trabalha com hipnose e
cujos procedimentos rendem as cenas mais claustrofóbicas do longa. Outro ponto
alto da trama é a presença do melhor amigo de Chris, Rod (LilRel Howery) que
traz um alívio cômico perfeito, porque, sim, Corra! não se satisfaz em ser um filme de horror, contendo também
muitos elementos de comédia. E, de certa forma, ficção científica ainda no
meio.
Existem algumas coisas
no filme que não me agradaram tanto, como alguns daqueles momentos de susto
pré-fabricado de filmes de horror/terror como pessoas passando pelo corredor do
nada ao som de uma música estridente ou fazendo coisas estranhas e que, a meu
ver, não adicionam nada ao enredo e só estão presentes para tentar aumentar a
abrangência do público e tornar o longa mais palatável trazendo algo que as
pessoas estão acostumadas e, de certa forma, estão esperando que venha de um
filme do gênero, mas estes são pontos fáceis de relevar quando se percebe o
tamanho da criatividade investida numa produção que mistura satisfatoriamente
tantos diferentes elementos cinematográficos com harmonia, trazendo um ponto de
vista novo e dando importante contribuição para o diálogo a cerca do racismo
nos dias atuais. É um filme muito interessante e muito inteligente, feito na
medida para quem é fã de coisas inovadoras e que fujam do lugar comum.
Nota: 10
Preciso ver!
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